“Is This It” – 20 anos. O legado e a “maldição” do disco de estreia dos Strokes (Parte 2)

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* Seguimos aqui fazendo tributos ao marcaaaaante “Is This It”, um dos discos das nossas vidas, você incluído, sabemos. Na continuação do post sobre as lembranças do mundo 20 anos atrás, quando os Strokes lançaram seu álbum de estreia, o “Is This It”, tratamos do legado e da “maldição” desse disco que mudou algumas coisinhas tanto na música quanto nas nossas vidas no geral.

É a parte 2 de um texto enorme do jornalista e músico Daniel Setti sobre o disco, que integra um projeto editorial dele a virar livro do brasileiro que vive em Barcelona, envolvendo ainda grandes álbuns da história do rock. Enorme de tamanho, enorme de bom. E Setti, ainda que na parte 2, volta lá para o começo, quando os Strokes surgiram.


por Daniel Setti Berço esplêndido

A história da formação dos Strokes serviria de roteiro a uma dessas séries hipsters ambientadas na Grande Maçã. Quiçá uma versão masculina de “Girls”, mas com os personagens dispondo das contas bancárias das protagonistas de “Gossip Girl” ou “Sex and the City”. Quem sabe, então, um “High Maintenance” com maconha mais cara.

Filho de John Casablancas, dono da agência de modelos Elite, e da ex-manequim dinamarquesa Jeanette Christiansen, o futuro vocalista Julian Casablancas era uma espécie de repetente fodão na escola particular Dwight, colada ao Central Park; Nick Valenzi, o favorito das garotas e depois guitarrista, virou seu BFF já na adolescência, enquanto o soon-to-be baterista Fabrizio Moretti, filho de italiano com brasileira e nascido no Rio de Janeiro, cumpria na turma o papel do menino certinho e discreto que quer se encaixar.

Julian achou uma boa ideia recrutar dois amigos de infância de igual pedigree social, Nikolai Fraiture (baixo), que conhecia do – atenção – Liceu Francês de Nova York e, posteriormente, já em 1998, Albert Hammond Jr., chapa dos tempos em que estudou num – uau – internato na Suíça. O bem-relacionado clã estava completo.

A aparição de Albert trouxe não apenas a segunda guitarra, elemento importantíssimo na sonoridade strokiana, como também o direcionamento de figurino ultracool que tanto marcaria o grupo. O guitarrista compareceu “vestido de Strokes” na audição em que conseguiria a vaga, impressionando os demais. Também fez a alegria dos companheiros quando seu pai, o cantor setentista inglês Albert Hammond, pagou pelo equipamento de ensaio.

Hype em nível inédito
Entre o primeiro show, a 14 de setembro de 1999 na casa noturna Spiral, e a assinatura do contrato com o Rough Trade, mais mítico dos selos independentes britânicos, foram poucos e loucos meses. O boca-a-boca causado pelas apresentações em picos como o Mercury Lounge se propagou graças à então incipiente ferramenta do hype da internet.

A badalação foi tanta que eles logo perceberam que poderiam passar dois anos recusando ofertas para aparecer na televisão e batendo o pé sobre a não obrigatoriedade de rodar videoclipes. Por decisão da banda, soberbamente ciente da expectativa que estava causando, este grande début ocorreria nada menos que no programa “Saturday Night Live”, já em 19 de janeiro de 2002, com Jack Black apresentando e tudo mais.

“Só precisei de dez segundos escutando o EP para contratá-los”, conta Geoff Travis, dono da Rough Trade, no livro “Meet Me in the Bathroom” (2017), de Lizzy Goodman, sobre a cena nova-iorquina dos anos 2000. Então vivendo um período de relativo declínio, operando mais como booker de shows do que como dono de gravadora, Travis renasceu para o mundo indie com a nova descoberta.

Num piscar de olhos já estavam a bordo também Jim Merlis, ex-assessor de imprensa do Nirvana, e o manager porra-louca Ryan Gentles, caso raro de agente a ostentar a mesma idade e sede de farra dos integrantes da banda para quem presta serviços. Sobre a mesa já repousava um contrato da RCA – que venceu a disputa com várias outras gravadoras – para o mercado norte-americano. Com apenas 20 mil dólares de orçamento, entre março e abril de 2001 Julian e colegas se trancaram no Estúdio Transporterraum, o mesmo onde fora registrada a demo, do então pouco conhecido Mark Ronson.

Depois de uma tentativa frustrada com o gabaritado produtor inglês Gil Norton (do mítico “Doolittle”, álbum lançado pelos Pixies em 1989), mandaram buscar mais uma vez Gordon Raphael. Sem usar mais de 11 canais em nenhuma faixa e distorcendo a voz de Julian em um amplificador de guitarra, ele garantiu que o material não fosse muito diferente do EP. Era um som quente, lo-fi, incomum na virada do milênio, e que depois seria imitado à exaustão. Um burocrata da RCA chegou a chiar após ouvir a versão final, chamando-a de amadora. Mas a história mostraria quem estava com a razão.

Enfim, nas lojas
Em 30 de julho “Is This It” saía exclusivamente na Austrália – aproveitando turnê do grupo pelo país -, chegando ao Reino Unido no final de agosto e aos EUA em 9 de outubro. O lançamento estava previsto inicialmente para 25 de setembro, mas foi adiado por causa dos ataques às Torres Gêmeas, que Albert e Julian viram ao vivo da janela do apartamento que dividiam. Atordoados, marcaram ensaio na mesma noite. Após acompanhar os louváveis trabalhos dos policiais posteriormente ao atentado, a banda decidiu tirar da edição norte-americana em CD a garageira “New York City Cops”, sobre o assassinato de um imigrante guineano pelas mãos da polícia nova-iorquina, e cujo refrão é “gambés de Nova York não são muito espertos”. “When It Started” entrou em seu lugar.

Devido ao vazamento das tracks, “Is This It” foi um dos pioneiros entre os discos que o público ouviu durante meses sem conhecer a capa. Com o sucesso que aquelas músicas faziam antes mesmo de seu lançamento, a responsabilidade que pesava sobre sua representação visual era grande. E foi correspondida em grande estilo pela imagem do fotógrafo Colin Lane. Nas curvas e na luva negra da modelo nua, Lane captou o espírito dos Strokes, traduzindo num clique a excitação atrevida, sensual e carismática dos sons por eles produzidos.

Dá até pena de quem teve que comprar a primeira edição lançada nos Estados Unidos que, por causa de um exagerado temor dos envolvidos ao conservadorismo do país, saiu com capa alternativa protagonizada por partículas subatômicas e, claro, infinitamente menos interessante. O público brasileiro também foi obrigado a levar para casa essa versão (com o prêmio de consolação da inclusão de “New York City Cops” no repertório).

Canalizando Nova York
No fabuloso livro “Rip It Up and Start Again” (2005), de Simon Reynolds, o produtor inglês Martin Rushent, conhecido por maravilhas do synthpop como “Dare!”, do Human League (1981), revela que um dos segredos para se criar um grande álbum pop é pensar as gravações de forma que o ouvinte seja capaz de memorizar e cantarolar não só os vocais, mas todas as partes do arranjo.

“Is This It” é um dos poucos discos que passariam no crivo de Rushent segundo esse critério, do começo ao fim. Uma simples audição de seus 36 minutos e 27 segundos é suficiente para que se interiorize cada ritmo básico e decidido de Fab – um importante resgate das batidas hipnoticamente dançantes da era new wave -, o baixo cálido e expressivo de Nikolai (na faixa-título ele emula o estilo de Paul McCartney) e, principalmente, as guitarras; tanto as mais convictamente roqueiras (Nick) quanto as mais processadas por efeitos e de melodias grudentas (Albert). Vale notar que a entourage do combo incluía JP Bowersock, professor de guitarra de Albert, idolatrado pelos rapazes a ponto de ser creditado como “guru” e fotografado como “um dos nossos” no encarte (juntamente com os igualmente não-integrantes Raphael e Gentles).

Com tantos elementos atraindo a nossa atenção, quase nem precisava que as composições ou a voz que as entoam fossem tão boas. O “problema” é que eram. Apreciador da geração Seattle e de entidades alternativas como Guided By Voices, o grupo acabou soando na verdade como uma versão terceiro milênio dos ícones das cenas protopunk e punk da Nova York dos anos 1970. Seus integrantes não estavam especialmente familiarizados com nomes daquela geração, como Television, e Nick achava o venerado antro CBGB um lugar “nojento”. Julian até que estava em sua fase de imersão em Velvet Underground na época da concepção do álbum. Mas, mesmo assim, ele cuidou para que as composições – que assina sozinho – falassem de relacionamentos por meio de prosa e léxico atualizados. Ou seja, as letras eram claramente identificadas com a linguagem dos jovens de 20 e poucos anos do começo do século 21, e não dos anos 1970.

Fato é que, ainda que de forma involuntária, se produziu alguma espécie de canalização de um certo “espírito de Nova York”, com Lou Reed, Blondie e até algo de Ramones fornecendo genes para o DNA strokiano. Com a diferença – e uma importante diferença – que nenhuma dessas “vacas sagradas” jamais reuniu tantas gemas pop roqueiras irresistíveis em um mesmo álbum. Julian canta como um Lou mais ágil e despretensioso, sobretudo em maravilhas da talha de “Modern Age”, cuja melodia vai nos cativando numa calma que contrasta com o galope apressado do surdo de Fabrizio. “Quando fizemos ‘Modern Age’, sabíamos que tínhamos encontrado o nosso som; depois fizemos ‘Last Nite’”, conta Nikolai em “Meet Me in the Bathroom”.

E não para. “Soma”, com sua cadência deliciosa, “Barely Legal” – do verso “Para que fique claro, fica só entre você e eu”, “Someday”, de ritmo híbrido entre a Motown e os Pretenders (“Sua cabeça não está legal”, canta Julian). É uma melhor do que a outra. Quando se chega no maior hit da banda, “Last Nite” (o segundo single, quinto lugar na parada alternativa da “Billboard”), um dos grandes hinos da década, lá já se foram sete canções irrepreensíveis. E ainda sobram outras quatro que não poderiam ter ficado de fora de jeito nenhum, como “Hard to Explain” (o primeiro single, lançado ainda em junho) e “Trying Your Luck”, outras duas pontuadas por guitarrinhas infernalmente grudentas. Isso sem contar os sensacionais finais bruscos das faixas, uma piada interna disfarçada de autossabotagem que acabou virando elemento estilístico a ser estudado.

Legado e “maldição”
“Is This It” chacoalhou a música pop e abriu portas para artistas que idolatravam os Strokes e que, talvez mais bem preparados para a fama que eles, venderiam mais e chegariam a multidões mais vastas. Como por exemplo Kings of Leon, pupilos que convidariam para abrir os shows da turnê do segundo trabalho – o ótimo “Room on Fire” (2003) -, ou os Killers, fãs confessos do grupo.

Entre as figuras carimbadas da cena nova-iorquina, o LP é tratado como uma unanimidade. Até o egocêntrico, competitivo e ranzinza James Murphy, do LCD Soundsystem, autor de uma das obras-primas do período (“Sound of Silver”, de 2007), defende que o trono de álbum da década seja ocupado por “Is This It”. Como efeito colateral, nascia uma espécie de “maldição” que, 20 anos depois, a banda não chegou perto de quebrar, sabendo que jamais igualará seu primeiro trabalho em qualidade e repercussão.

Já na altura da produção do terceiro disco, “First Impressions of the Earth” (2005), o desgaste do jetset e a pressão por ser o principal nome do “movimento” abalariam as estruturas do quinteto, que prosseguiria ente hiatos cada vez mais longos – “The New Abnormal”, LP de 2020 premiado com o Grammy de Melhor Disco de Rock, é apenas o sexto trabalho em duas décadas – shows sonolentos e projetos paralelos difusos.

Julian passou a odiar turnês, porque não conseguia compor entre voos e hotéis. Albert desenvolveu uma caricata trajetória de roqueiro junkie, passando por heroína, cocaína e cetamina. Teve que sofrer intervenção de família e amigos, o que quase matou a banda de forma definitiva. Mas, com tudo isso e depois de tanto tempo, o “Is This It” permanece como o melhor disco de rock do século 21 e – por que não? – um dos maiores de todos os tempos.

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** Daniel Setti é um jornalista, músico, DJ e curador musical paulistano radicado em Barcelona desde 2006. Em São Paulo, foi baterista das bandas Jumbo Elektro e TchucbandioniS, tocou com Elza Soares e o saudoso rapper americano Guru e ajudou a criar o selo Reco-Head. Em Barcelona, presenciou 14 edições do Primavera Sound, cobrindo metade delas como jornalista. Atualmente atualmente toca na banda Elora.

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