CENA – Juçara Marçal cria um mundo sem fronteiras sonoras em “Delta Estácio Blues”

* Quais são as fronteiras da música? Por que elas existem? A pergunta é tanto para ouvintes quando para fazedores dessa música.

Pegue o rap brasileiro, por exemplo. Criação das margens da cidade em direção ao centro, levou tempo para ser reconhecido com o devido valor. Mano Brown, talvez seu maior autor, ainda não é reconhecido por muitos como talvez o maior escritor de seu tempo – e nessa nem estamos falando só de rap. Uma fronteira social, uma distância geográfica. Enquanto autor, Mano Brown escutou críticas quando não fez um disco de rap em seu primeiro trabalho solo. Por que ele não pode fazer outro som?

Assim como Brown tem mais quem trabalhe para derrubar esses muros e encurtar essas distâncias. Em 2004, Juçara Marçal estava junto com o grupo vocal feminino Vésper nos cuidados de um álbum dedicado a autores paulistas. Tinha Adoniran, tinha Rita Lee e ela fez questão de incluir Mano Brown e Edi Rock com um clássico recente: a potente “Negro Drama”, de 2002. Se estamos falando de música paulista, como não ter um rap dos Racionais? Juçara já se fazia a pergunta que abre este texto.

E parece sempre voltar a ela a cada trabalho, em sua carreira de cantora cada vez mais autora, como gosta de dizer. E talvez dê para dizer que essa pergunta dita parte da missão de “Delta Estácio Blues”, seu recém-lançado segundo álbum solo que habilidosamente em sua construção tira o referencial sonoro imediato de tudo e deixa o ouvinte sem saber onde está. Mas é rap? Aquela voz é da Juçara? Isso aqui é samba? Não há um ponte definida nem mesmo entre este e o trabalho anterior de Juçara, “Encarnado” (2014).

Repare na voz. Juçara traz diversas. Pelo álbum, ela pode ser Rodrigo Ogi (autor de “Crash”), pode ser Tulipa Ruiz (autora de “Ladra”) ou pode ser Tantão (autor de “Oi, Cat”). Repare nos gêneros, como reparou o crítico GG Albuquerque, ao notar que “Crash”, que é um rap, se revela como samba, sutilmente. Repare nos timbres e falhe em adivinhar o que é o que na engenharia eletrônica tocada por Juçara ao lado de um fiel amigo, Kiko Dinucci, produtor do álbum.

Muito da linguagem de “Delta Estácio Blues” vem de álbum de rap: no caso, de “Atrocity Exhibition”, de Danny Brown, com suas bases completamente distantes de qualquer convenção.

“Ficamos impactados com aquilo”, conta Juçara. E nessa vontade de pensar outro som veio a ideia de ter bases que não trouxessem cadências harmônicas para que ela e Kiko pudessem brincar com outras possibilidades. “Uma aventura que a gente não sabia onde ia dar.”

Cada ouvinte que dê conta de descobrir onde ela chegou. A gente que não vai se arriscar. Mas a cada audição tudo faz mais sentido. Não há fronteiras no mundo de Juçara Marçal. E este nos parece é um mundo melhor.

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