Disco bom pede o repeat. E é por isso que Don L emplaca uma segunda música em nosso top 50, foi preciso dizer umas coisinhas a mais, afinal uma canção nova se fez favorita ante nossa escolha anterior. E nesse mundo novidadeiro por demais, fizemos questão de recuperar um álbum de 2008 que só agora pintou no streaming. Procure saber. O mundo não começou hoje. Ainda bem.

‘Eminência parda”, com “e” inicial, pode ser uma pessoa influente, um poderoso ser qualquer sem cargo oficial. Originalmente, pode ser também entendido como o(a) conselheiro(a) manipulador(a) de alguém com um cargo real, o braço-direto de um presidente, por exemplo. Numa leitura mais aberta da expressão, o que é o crime organizado, por exemplo, se não a eminência parda da realidade política brasileira? Emicida na faixa “Eminência Parda” extrapolou o significado da expressão ao cantar sobre sua própria influência, o poder do rapper em alterar os rumos da cultura (“Não sou convencido, sou convincente/ Aí, vê na rua o que as rima fizeram”). Aqui, Don L explode os significados ao trocar um ‘e’ pelo “i” e inventar um novo dito – uma letra muda o fim do filme. Iminência é o que está para acontecer. A iminência parda pode ser entendida como algo extraoficial que está por vir – uma revolução? O ‘pardo’ também tem seu sentido multiplicado. Se inicialmente veio emprestado da expressão original, agora pode se referir também à miscigenação brasileira. Cabe aos filhos da violência colonial qualquer mudança possível contra “os donos do estado que ainda são os filhos dos senhores de escravos”. Talvez tenha mais aí, certamente tem. A letra é também uma longa revisão biográfica do próprio Don, uma reavaliação de tudo que rimou até aqui (“Me fecharam portas/ Eu dobrei a aposta). Uma vez confrontado com uma questão de vestibular pedindo explicação sobre um verso seu, Don L afirmou que marcaria as quatro opções dadas – polissemia é mato na sua escrita. E ainda nem falamos da música em si. A base usa um sample quase na íntegra como refrão, mas não permite que essa vire a cama da música – o método mais comum ao se usar um corte longo. Aqui, o sample é uma faca afiada cortando o fluxo dos versos. O corte abrupto não pede atenção com um toque no ombro, pede a atenção que te exige swing para escapar de um ataque, da morte iminente.
“Amor”, o novo álbum da Lupe de Lupe (aguarde nossa resenha), tem um formato ousado. São quatro músicas, cada uma liderada por um integrante, quase todas na margem de dez minutos. Outra ética do disco: “Tudo foi gravado nos estúdios caseiros de cada pessoa”. Com esse limite posto, o espaço para a experimentação se torna infinito. Nesta “Vermelho (Seus Olhos Brilhanto Violentamente Sob os Meus)”, por exemplo, diferentes momentos se apresentam ao longo da faixa – canção, pausa abrupta de um sonho, uma intervenção (“A gente fez tudo que foi capaz”) e um desmanche sonoro (“Um dia aleatório a gente vai acordar e perceber/ Que já não lembra mais um do outro”). Ah, sim, se você reparou nas letras, amor aqui não é idílico ou imortal. Posto que é chama, o amor se apaga também. “Todo amor é feito pra acabar”, registra Vitor Brauer em “Se Nosso Nome Fosse um Verbo”, um fluxo de consciência sem métrica definida angustiante. Amor é fundamental, não fácil. Vale para o sentimento, vale para o disco.
Ausente nas plataformas de streaming esse tempo todo, um dos grandes álbuns de Tom Zé, “Estudando a Bossa” (2008) finalmente deu as caras, via Biscoito Fino. É desse período aquele vídeo clássico dele no Jô Soares explicando como a bossa nova desembocou em “Atoladinha”, um funk com seu metarrefrão, microtonal e plurissemiótico. Geral riu, na época, mas fazia todo o sentido. Visionário. João Gilberto deu no pancadão: é samba.
E, por falar em bossa e João, Joyce Moreno incluiu em seu novo álbum, “O Mar É Mulher”, essa parceria afinada com Jards Macalé. Os dois discípulos do João cantam o mestre ao seu modo. Aliás, Joyce segue honrando o aprendizado com seu violão sofisticado dando as caras por todo o disco, ouça a elegante faixa-título ou “Adeus, Amélia”, uma quase continuação de sua clássica “Feminina”. É tudo comandado por seu violão e um poderoso trio: Tutty Moreno na bateria e percussão, Hélio Alves no piano e Rodolfo Stroeter no baixo). Se o mar é mulher, a questão é amar.
Letrux celebra sua carreira na turnê “20 Anos Alternativa” ao mesmo tempo que recupera um acervo de hits perdidos da cena independente brasileira dos anos 2000 a 2010, um bocado de canções maravilhosas que poderiam ser muito mais conhecidas não fosse a crise do mercado fonográfico. Não fosse isso, muita gente até hoje não acreditaria na ladainha de que a música brasileira não tem novidades… Nessas, a cantora e compositora carioca se conecta com a nova geração ao soltar duas parcerias com a banda roqueira Nouvella, parte da cena de Santa Catarina e acostumada a cantar mais em inglês. Além da nossa escolha, saiu também “Dropar Teu Nome”. Letícia e a vocalista Yasmin Zoran compartilham um registro vocal meio parecido. Supercombinou.
Dez anos atrás, Elza Soares ganhava pela primeira vez em sua carreira um repertório de inéditas todo pensado para ela. Era justiça sendo feita. E assim o disco “A Mulher Do Fim Do Mundo” marcou mais uma de suas tantas ressurreições ao longo da carreira. Na faixa-título, uma profecia foi estabelecida: “Me deixem cantar até o fim”, pedia Elza. Se deu exatamente assim. Um dia antes de morrer, em um registro ao vivo, “Mulher do Fim do Mundo” foi a última música cantada pela nossa maior voz. Celebrando a canção, dez anos depois de também ter feito seu registro em “Por Elas. Sem Elas”, o compositor Romulo Froes, parceiro de Alice Coutinho na faixa, regrava esse marco de sua carreira. Cabe o debate, mas não seria a melhor canção brasileira do século XXI, não? Se pá, hein.
O recorte do sample, um som velho distorcido, joga a gente em um cenário cinza. Bersote confirma o clima nos versos: “Andando no centro, pensando em dinheiro”. A música do carioca tem esse poder cinemático, trilha de um filme de enredo aberto, preto e branco e enfumaçado. Jovem de tudo, com pouco mais de 18 anos, Bersote também trabalha para ser ator. Gostou de “Maria Esmeralda”? Vai pirar aqui, tem uma vibe parecida.
A vírgula em “Um Mar para Cada Um,” não era acaso. Luedji Luna entrega duas semanas depois do arrepiante álbum novo uma sequência completa, o apaixonado “Antes Que a Terra Acabe”. Tão jazzístico quanto o anterior, há algo de mais quente por aqui. Uma emergência, mais terra que mar, o título entrega. E nem só de amor romântico se faz a vida, tem amor aos pares e companheiros de luta. Só ver a bossa em “Bonita”, com letra inglês como se quisesse retomar dos gringos o nosso ritmo original e entregar a mãe da coisa, nossa Alaíde Costa. Luedji faz justiça com as próprias canções.
E, por falar em ritmos e tons nossos, aqui a busca é por uma brasilidade evaporada no canto de “Coivara do Sono…”, prévia do segundo álbum de Lau e Eu, a persona artística assumida pelo sergipano Lauckson José Santos Melo. Um Brasil que não vira as costas para América Latina. Como ele avisa no Instagram: “Feroz comum silêncio entre nós”. Outro detalhe: parte do som foi feito em casa mesmo. Uau.
É uma pira nova mesmo ver a banda Marrakesh, do Paraná e adotada por São Paulo, cantar em português. Ok, não vamos mais falar nisso quando for para nos referirmos à Marrakesh. Já normalizou. Mas é que esse “noise luxuoso” e experimental de uma banda cheia de sonoridades e backing vocals espertos e bem colocados entregam a sensação de que a língua-mãe coube de um modo perfeito nesta nova pegada da banda. “Cão” é o último single antes do terceiro álbum da Marrakesh, homônimo, ainda a ter sua data divulgada.
11 – Joaquim – “Emboscada” (6)
12 – Alberto Continentino – “Cerne” (8)
13 – Zé Ibarra – “Segredo” (10)
14 – Carol Cavesso e Otis Trio – “Astra” (13)
15– Lupe de Lupe – “Redenção (Três Gatos e Um Cachorro) (14)
16 – Jadsa – “Samba pra Juçara” (15)
17 – Mateus Fazeno Rock – “Arte Mata” (16)
18 – eliminadorzinho – “A Cidade É uma Selva” (18)
19 – Marina Melo – “Cidade” (com Ná Ozzetti) (19)
20 – Gab Ferreira – “Ponta da Língua” (20)
21 – Mateus Aleluia – “No Amor Não Mando” (21)
22 – Alaíde Costa – “Bandeira Branca” (com Amaro Freitas) (22)
23 – Antropoceno – “Queda do Céu” (23)
24 – Nego Joca – “Nada Igual” (24)
25 – Catto – “Eu Te Amo” (25)
26 – Eduardo Manso – “FRB 20220610A” (26)
27 – clara bicho – “Meu Quarto” (27)
28 – Stefanie – “Fugir Não Adianta” (com Mahmundi) (28)
29 – Maré Tardia – “Ian Curtis” (29)
30 – Avenida Paulista, da Consolação ao Paraíso – “No Fundo, no Fundo” (Maurício Pereira e Gui Calzavara) (30)
31 – Vera Fischer Era Clubber – “Lololove U” (31)
32 – Celacanto – “Quadros” (32)
33 – Josyara – “Eu Gosto Assim” (33)
34 – Terno Rei – “Peito” (34)
35 – Rachael Reis – “Jorge Ben” (35)
36 – Rael – “Onda (Citação A Onda) (com Mano Brown e Dom Filó) (36)
37 – Cajupitanga e Arthus Fochi – “Flamengo” (37)
38 – Djonga – “Demoro a Dormir” (com Milton Nascimento) (38)
39 – Jovens Ateus – “Mágoas – Dirty Mix + Slowed Reverb” (39)
40 – Danilo Moralles – “Fervo de Amor” (40)
41 – Ogoin & Linguini – “Vícios Que Eu Gosto” (41)
42 – Bufo Borealis – “Urca” (42)
43 – Terraplana – “Todo Dia” (43)
44 – Marina Melo – “Prometeu” (com Maurício Pereira) (44)
45 – Apeles – “Mandrião (Vida e Obra)” (45)
46 – ÀIYÉ e Juan De Vitrola – “De Nuevo Saudade” (46)
47 – Dadá Joãozinho – “As Coisas” (com Jadidi) (47)
48 – Gabriel Ventura – “Fogos” (48)
49 – Nyron Higor – “São Só Palavras” (49)
50 – BK – “Só Quero Ver” (50)
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* Entre parênteses está a colocação da música na semana anterior. Ou aviso de nova entrada no Top 50.
** Na vinheta do Top 50, o cantor e rapper Don L.
*** Este ranking é pensado e editado por Lúcio Ribeiro e Vinícius Felix.