Não reunimos aqui as melhores músicas do ano. Reunimos as melhores músicas do ano também. É que o Top 10 desta semana busca recuperar nos melhores textos do ano, onde achamos que acertamos na análise, no feeling ou mesmo na gracinha feita, enfim. Um resumo das últimas 49 semanas por aqui, onde sempre trouxemos os dez sons lá de fora que conversaram com a gente mais do que qualquer coisa no espaço de sete dias – esse curto espaço onde tentamos ouvir toda a música do mundo e sofremos com a impossibilidade disso. Aqui estão as melhores conversas.

Rosalía adquiriu outro tamanho após “Motomami”. O próximo álbum seria seu maior desafio, nunca ela encarou tanta expectativa. O que entregar aos novos e velhos fãs? O que eles esperam, oras: uma rasteira bem dada por ela. Se tem quem espere mais do mesmo, os seguidores de Rosalía já sabiam que pa’ ti, nabi, chicken teriyaki. “Lux” troca o eletrônico pelo clássico. Entre a música orquestral, o canto lírico. Tudo desconstruído, retorcido, sem carão de música pop, e aí que a coisa começa a ficar pop. Ela impõe sua visão do que pode ser a música pop em 2025. Dos muitos sentidos da temática católica, o viés crítico está posto no hábito que Rosalía veste como camisa de força já na capa do álbum. Catolicismo, sim, mas também pecado, corpo e desejo. Ela está falando das santas e todos sabem como a igreja católica trata as mulheres. Controle. Exclusão. Silêncio. As homenageadas por Rosalía são escolhidas a dedo, expondo as contradições da ordem. Ela está pensando em território quando fala em Santa Rosa de Lima, a primeira santa nascida nas Américas. Está falando de intelectualidade quando fala Santa Hildegarda de Bingen, personagem pouco lembrada hoje em dia, apesar de seus múltiplos talentos nas mais diversas áreas do saber. Sabe quando a Bjork era menos creditada que seus colaboradores? Rosalía passa pelo mesmo processo quando aparece com seus discos cada vez mais ambiciosos e cheios de informações e pesquisa e estudo. Não por acaso, Bjork também está no disco. Ou como resumiu em entrevista ao jornal britânico “The Guardian”: “Não tem ponto sem nó”. E ainda vamos falar muito e muito de “Lux”. Desta vez, é sobre “La Perla”.
A história de Davi e Golias é a metáfora da fragilidade ser capaz de vencer a brutalidade. Na tradução de Michelangelo, ao tornar Davi uma estátua imponente, sua relativa fraqueza vira símbolo de força ao guardar sua coragem de enfrentar tamanho desafio. “Virgin”, quarto álbum da Lorde, é de certa forma seu Davi. Uma obra nua para dar a dimensão da força de seu corpo, mente e identidade. É a obra do começo da maturidade da artista em cena desde os 16 anos, tempo vivido entre um longo relacionamento com uma pessoa mais velha, uma pandemia e todo tipo de pressão de ser uma pessoa pública. “It’s so confusing sometimes to be a girl”. Pense na própria expressão “virgem”, dê um Google aí. A maioria dos resultados vai falar sobre o corpo feminino, sobre controle, culpa e medo. Homem não tem virgindade? “After the ecstasy, testing for pregnancy, praying in mp3”, verso do interlúdio “Clearblue”, um teste de gravidez, talvez seja a maior referência ao eterno medo da “gravidez na adolescência”. Mulheres entenderão. Expresso em outras canções do álbum, “David” é o ápice da conversa ao encerrar “Virgin” com tamanha sinceridade da Lorde sobre dominação de seu relacionamento anterior, sobre sua entrega a um cara 17 anos mais velho, um figurão do mundo da música. “Eu fiz de você Deus porque era tudo/ Que eu sabia fazer/ Mas eu não pertenço a ninguém”, reflete a cantora. Agora ela está livre, mas não sem medos. “Será que amarei novamente?”, se pergunta ao final. Sim, Lorde. Já começou a amar a si mesma.
Faz todo o sentido quando descobrimos que Ethel Cain maratonava pela primeira vez “Twin Peaks” enquanto gravava “Willoughby Tucker, I’ll Always Love You”. O clima da série de David Lynch e Mark Frost está por todo o álbum – a faixa “Willoughby’s Theme” é um aceno a “Laura Palmer’s Theme”. Dos timbres dos sintetizadores e das vozes até a temática. O disco é um prelúdio da história contada no primeiro álbum da artista, “Preacher’s Daughter”, onde seu alter ego é assassinado. Aqui vemos a personagem antes, se apaixonando pela primeira vez e vendo os limites da vida no interior dos Estados Unidos por conta da rigidez religiosa e social. Na vida real, Hayden Silas Anhedönia, a pessoa por trás do nome Ethel Cain, é uma mulher trans crescida em uma comunidade batista no sul dos EUA. Trocando em miúdos, ela sabe do que está falando. Sua ficção tem fortes paralelos com a vida real. Tanto que ela admite ser difícil escutar as próprias músicas de vez em quando. Encara você o desafio. Ela merece.
O Geese foi de projetinho daqueles de contraturno da escola que incentiva os alunos a fazerem alguma coisa em vez de só vagabundear para sensação indie mundial muito rápido. E aí rolam aquelas coisas inexplicáveis da música. Disco a disco, e agora estão em seu terceiro álbum, “Getting Killed”, ficaram cada vez mais estranhos, indecifráveis e cheio de piadas internas. Boa sorte em tentar entender as letras ou as entrevistas de divulgação deles. A “Rolling Stone” americana se atreveu a perguntar o que eles andaram ouvindo como inspiração e tomaram “Beethoven” bem insolente. Ah, os jovens… O que é visível e fácil de entender é a multidão que colou para ver um show gratuito da banda em Nova York. O crescimento rápido também trouxe uma junção de haters, assustados com o tumulto. O Gesse é surpresa para quem estava desatento. Lê a gente que no próximo fenômeno você fica sabendo antes… hehehe
Enquanto o mundo ainda começava a absorver a luz de Rosalía, Charli XCX vestiu preto e veio contar que suas férias ficarão para mais tarde. A bela está envolvida na trilha sonora da nova adaptação de “O Morro dos Ventos Uivantes”, dirigida por Emerald Fennell, a diretora de “Saltburn”, filme já aguardadíssimo pelo trailer quente (e superbrega) estrelado por Jacob Elordi e Margot Robbie. Pelo que Charli conta, escrever músicas a partir do roteiro enviado por Emerald foi um escape legal do mundinho “brat”. “House”, aparentemente o primeiro single de alguns, veio em um caldo unindo essa inspiração com outra paixão de Charli: o Velvet Underground. Desde que assistiu o doc do Todd Haynes sobre o Velvet Underground, ela viciou na frase de John Cale sobre todas as canções da banda precisarem ser brutais e elegantes. Com esse mantra na mente, ela teve a disposição de ligar para Cale e perguntar se ele queria se meter nessa história. Ele topou. Brutal. Elegante. E bem experimental para o mundinho pop, hein? Que época interessante. Os chatos piram.
A criatividade é muito associada com “quanto mais maluquice melhor”. Mas e quando voltar ao básico diz tudo? É o que Little Simz fez em parceria com seu novo produtor, Miles Clinton James. Note o instrumental mais básico. “Young” é basicamente uma bateria e um baixo meio desleixado. Influência punk total. A leveza do som dá espaço para Little Simz brincar com os lugares comuns da cultura de juventude inconsequente. Baladas, drogas e ânimo infinito dão lugar a um personagem mais comedido, meio sem grana e desajeitado, mas que ainda sim quer viver seus “sonhos mais loucos”. É tipo você achar que está em “Euphoria”, mas a sua série tem um orçamento bem mais baixo. Mas quem se importa? Também queremos curtir! A música é pura ficção, mas pode ser só ela olhando com graça e carinho para sua eu mais jovem e inocente.
Há quanto tempo uma banda punk não era o troço mais “perigoso” do mundo? Em Glastonbury, os protestos da dupla Bob Vylan a respeito do genocídio em curso na Palestina virou caso de polícia. Bob puxou um canto contra o exército israelense e ficou sob investigação. Eles também tiveram os vistos revogados pela administração Trump na porta de uma turnê pelos EUA. Em outras palavras, a banda virou o “Inimigo Público Número 1” da extrema-direita. Em um texto no Instagram, o grupo refletiu: “Não estamos aqui pela morte de judeus, árabes ou qualquer outra raça ou grupo étnico. Estamos aqui para desmontar um sistema militar violento, que está matando civis inocentes aguardando ajuda. Uma máquina que acabou com Gaza”. O texto ainda defendia que a banda não quer ser protagonista da causa, porque a causa “Palestina Livre” é maior, mais importante e urgente. Causa justa, música boa, não se deixe levar pela piada em forma de nome artístico.
Natural que uma música dos anglo-franceses do Stereolab carregue os dois idiomas. “Melodie” é francês, “Is a Wound” é inglês. Melodia é uma ferida. E a ferida é cutucada quando o Stereolab encerra a canção e entra numa jam expandido tudo que aquela melodia é capaz de provocar. Aliás, letra e música parecem juntas por acaso aqui. Se o tema instrumental é alegre, a letra aborda o fim da verdade. “O objetivo é manipular/ Mãos pesadas para intimidar”, observam. Por falar em acaso, ele é um dos guias deste álbum. Tim Gane, guitarrista da banda, disse à revista “Mojo” que buscava mudanças bruscas de acordes enquanto escrevia as músicas só para ver no que dava, sabe? O título, “Instant Holograms on Metal Films”, foi achado aleatoriamente, abrindo uma revista australiana qualquer. Mas nessa mesma entrevista ele e sua parça de sempre Lætitia Sadier definem o disco como otimista. “Aerial Troubles”, por exemplo, é basicamente sobre o fim do capitalismo e sobre esse ser o momento para colocar no lugar algo melhor. Por isso a música do Stereolab soa divertida mesmo quando é ácida liricamente. Eles estão esperançosos e querem encher a gente de esperança. É um jeito de se pensar no futuro. Melodias ferem e curam. E também matam fascistas.
No Instagram, Arca apresentou sua nova música assim: “Esta é para todas as guerreiras que se montam e desconstroem e brilham na alquimia de se permitirem a liberdade de brilhar sem medo”. São músicas importantes para a artista venezuelana, que afirmou ter trabalhado por anos até ficarem perfeitas. Não por acaso foram lançadas juntas, e são ligeiramente parecidas no título e musicalmente. A distinção temática aparente, sexo e solidão, respectivamente, também se entrelaça, na medida em que a energia e agressividade da primeira conversam com a fragilidade e dor da segunda. É comum o relato de mulheres trans que sofrem por conta de parceiros, em geral homens cisgêneros. Eles não assumem os relacionamentos, tratam elas como objetos e essas relações tóxicas acaba as violentando psicologicamente e fisicamente. Talvez sobre essa dor que Arca canta, sobre esse conflito. Ambas as músicas funcionam como um abraço dela em todas essas mulheres. Elas não estão sós.
Não, o rapper Billy Woods, figuraça da cena underground dos EUA, não fez uma música homenageando o Timão. “Corinthians” é uma referência a Coríntios, texto bíblico escrito por Paulo para auxiliar os critãos de Corinto, que andavam perdidos. É neste texto, mais exatamente no capítulo 13, que São Paulo define que sem amor nem toda a sabedoria e fé do mundo seriam capazes de algo. Reconhece de algum lugar essa ideia? Sim, é o capítulo de inspiração de Renato Russo para “Monte Castelo”. Nosso Billy também se inspira no capítulo 13, mas apela para outro trecho, onde Paulo comenta que pelo espelho vemos apenas um enigma. Afinal, somos a imagem e semelhança do criador, mas o espelho não nos traz uma resposta. “Mas então veremos face a face (…) conhecerei como também sou conhecido”, escreve Paulo, considerando a resposta na vida eterna. Até lá, fé, esperança e o amor, especialmente o amor, são a chave de tudo. Billy apela para essa metáfora para expressar sua angústia de ser mero espectador de um mundo em crise. A inteligência artificial cansa nossa mente com sua realidade fake, o governo de Trump financia um genocídio em Gaza e o Musk fala em colonizar Marte – imagina se o Billy souber o que é ser brasileiro. Só com fé, esperança e amor para segurar o tranco.
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* Na vinheta do Top 10, a bombator espanhola Rosalía.
** Este ranking é pensado e editado por Lúcio Ribeiro e Vinícius Felix.