por Pedro Antunes
Gostaria de sugerir que você ouça “Javelin” antes de seguir com este texto. Idealmente, deveria ouvir ao álbum sem saber muito a respeito deste trabalho e alheio ao que Sufjan Stevens escreveu sobre ele na última sexta-feira (6).
Sei que é praticamente impossível, mas deixo registrada esta tentativa.
Tudo bem, eu espero aqui. Fico quietinho, tentando não fazer barulho ou atrapalhar demais. Tenho todo o tempo do mundo, afinal.
E, caso não queira esperar os 42 minutos do disco todo para voltar aqui, deixe-se levar pelo menos pelas três primeiras faixas de “Javelin”. Antes da atenção se diluir por outras telas por aí, retorne a este texto.
Um spoiler: lá pelo 10° verso de “Will Anybody Ever Love Me”, você sentirá pelo menos um embrulho no estômago, como se alguém o amarrasse com um nó de marinheiro. Se prepare, ok?
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Já de volta? Vamos lá?
Uau, não é?
Seria uma heresia dizer que “Javelin” é o melhor álbum da carreira do cantautor? Talvez obras aclamadas como “Illinoise” (2005) e “Carrie & Lowell” (2015) tenham vivido tempo suficiente na prateleira dos indies tristes para garantirem lugares no topo, mas nenhum deles ofereceu a sensação física de se ouvir “Javelin” antes de qualquer contexto.
Isso porque Sufjan Stevens é um artista intrincado, daqueles capazes de criar uma música altamente pop, no sentido de construir refrãos magnéticos e cantaroláveis, e fazê-los acompanhados por uma complexidade de arranjos de instrumentos díspares, vozes, corais e versos que se autorreferenciam.
Gosto de brincar que Sufjan Stevens é dono de uma espécie de folk progressivo fofo, no qual a voz frágil, o violão e um coração aberto estão no centro de uma colcha de retalhos de pequenas histórias costuradas com habilidade pelo artista nascido em Detroit.
Mas, enquanto outros trabalhos de Sufjan exigissem mais de uma audição, como que para digerir cada invencionice e cada detalhe da obra, “Javelin” é um soco. Um tapa. Uma voadora. No peito. É desfalecedor de tão, tão, tão aberto e entregue aos sentimentos como saudade, luto, crença e perda. Você não precisa saber da história por trás do disco (embora eu vá entrar nela logo na sequência) para ser completamente absorvido pelo álbum.
“Javelin” tem a força de um buraco negro que te puxa para um vazio enorme. É uma jornada e tanto.
Quando Sufjan Stevens publicou o que motivou o álbum, o que antes era um embrulho no estômago se confirmou: trata-se do luto de perder alguém.
Sufjan nunca foi um sujeito de tratar de si mesmo fora das músicas. Pouco se sabe sobre o lado pessoal do artista que, com o violão no colo, parece tão vulnerável, mas ele decidiu abrir esse pedacinho dele para a gente.
Neste ano, Sufjan perdeu o companheiro. E essa partida tão prematura, tão amarga, tão angustiante, motivou um dos discos mais humanos e sinceros de 2023, quiçá do século.
E minha proposta de ouvi-lo sem ter o conhecimento prévio do que motivou o álbum parte da mesma sensação que tive quando, pela manhã de sexta-feira, dei play em “Javelin”, antes mesmo de receber a incumbência de Lúcio Ribeiro para escrever sobre ele para a Popload.
Ouvi “Javelin” sem saber sobre o tema central previamente ou sobre o conceito criado pelo artista. Éramos eu, Sufjan e seus sentimentos. Fim.
Em tempos de tanta exposição prévia, das “eras” marcadas por cores e cortes de cabelo ou por conceitos mirabolantes, de telões gigantes e coloridos, essa sensação crua e nua arrepia, conforta e atravessa.
Não é melhor, nem pior, embora o Twitter seja geralmente incapaz de gostar de ambas as coisas (do que é puramente orgânico e do que é um telão de LED de milhões de possibilidades como dos shows do U2 na nova casa de Las Vegas).
O que mexe com a gente em “Javelin” é e o sentimento no estado mais íntimo e puro. Isso é lindo. E humano. A música precisa dos aparatos todos, mas precisa disso também.