* A SEMILOAD, você foi devidamente avisado e deve ter se deliciado, nasceu aqui na semana passada. A nova seção é uma parceria nossa com a ótima newsletter “Semibreve”, definida aqui como um “sensacional espaço pop de conversas musicais criado pela talentosíssima Dora Guerra, de Belo Horizonte”. Vamos repetir porque não tem o que tirar nem pôr.
Lembrando, como um mantra: a newsletter da Dora tem 1 ano de vida, ela tem 22 e a Popload tem 20. Estreamos como “coluna virtual” no site da Folha de S.Pauo dois anos depois de a Dora nascer, pensa.
A ideia aqui é pegar algum-um assunto que Dora discutiu lá na Semi e trazer aqui para a Load, mas de um modo mais instigado, provocado. Para ver o que esse choque de ideias, ou choque de cultura, pode gerar de papo. E virar um remix da newsletter com este site. Um back-to-back. Uma faixa-bônus da Popload.
Semana Passada, Dora e a gente discutiu o futuro das guitarras. Ou a volta delas com tudo. Foi antes de o importantíssimo Black Alien ter lançado o novo single dele, um rap sobre rock. Com guitarra.
Nesta semana estimulamos algo que a Dora nos pré-estimulou com a newsletter dela: qual é a da série Tiny Desk Concerts, do canal de Youtube da NPR americana, que tem o conceito mais legal (e indie) da internet, dos vídeos que a gente publica aqui em uns três ou quatro posts semanais, uma espécie de precursora das lives neste mundo em que (sobre)vivemos e cresceu tanto que pode ser que a Tiny Desk esteja matando a Tiny Desk. Exagero nosso?
A gente se preocupa com as coisas das quais gostamos. E a Tiny Desk ocupa um lugar bem bonito nos nossos corações atualmente. Então toma essa pensatinha humilde mas necessáriaE nem é só por causa da apresentação do Idles para o programa, em 2018, uma das coisas mais espetaculares da música de uns dez anos para cá.
E o que a Dora tem a dizer sobre isso é o seguinte:
Como todas as melhores histórias, foi uma piadinha que originou um dos nossos fenômenos preferidos da internet. Em 2008, Bob Boilen – o radialista responsável pelo programa “All Songs Considered”, da NPR – saía de um show em um bar, acompanhado do editor Stephen Thompson. Boilen estava bastante frustrado por não conseguir ouvir o show no meio da galerona e brincou: “Os músicos deviam tocar lá no meu escritório, que ia ser mais fácil de ouvir”. Pronto.
Surge um dos maiores fenômenos recentes da internet musical: a Tiny Desk Concerts. Aquele que todo mundo já conhece, que bota artistas atrás de uma escrivaninha e fala “se vira aí”. As bandas preparam três ou quatro músicas, tocam de forma intimista e batem um papo com a galera da NPR – meio festa da firma. O resultado costuma ser sempre ótimo.
O curioso é que a Tiny Desk é precursor das lives – não que essas não existissem antes, mas ele entendeu o potencial que artistas têm de se sobressair em um espaço pequeno e caseiro, como se nós tivéssemos acesso a suas salas de estar. Uma espécie de forma minimalista de pensar em tempos tão megalomaníacos. A NPR, espécie de sindicato atuante de rádios underground, encontrou também uma forma de se reinventar com o indecifrável YouTube: entre algoritmos e tudomais, é difícil encontrar um formato que funcione. Mas funcionou, e para quem quer aparecer, uma passadinha no escritório da rádio em Washington foi se tornando obrigatória.
Mas me incomoda – e eu detesto ser a portadora de más notícias – anunciar que, em parte, a Tiny Desk está morrendo. Ele sobrevive, sim, com números cada dia maiores de visualizações. Mas ao meu ver, a Tiny Desk vem perdendo a propriedade que mais o tornava atraente: a carinha de refrescante, abridor de portas. Agora, artistas que enchem estádios se prestam ao papel de humildões e fazem suas próprias Tiny Desks, despidos dos grandes efeitos, e tocam uma coisa ou outra. É lindo, mas agora é mais um Jimmy Fallon.
Tem um fator de identidade envolvido aí: em tempos pandêmicos, o formato perde ainda mais o propósito. A Tiny Desk (Home) Concerts é tudo, mas não é nada: é gente na sala de estar, é Jacob Collier multiplicado, Phoebe Bridgers presidente. A cola que mantinha o formato – a sala apertada, o excesso de discos no fundo, a poluição visual que é a cara de um show em escritório – sumiu completamente, desfazendo a identidade que a gente tanto gosta. Nada diferencia, enfim, a Tiny Desk (Home) de… bom… qualquer outra performance. Mas não é o fim da Covid-19 que vai solucionar todos os nossos problemas. Aliás, os nossos, sim. Os da NPR, nem tanto.
O problema, para mim, está no tamanho – e na falsa sensação de que cabe todo mundo. Descendo a lista das últimas semanas, não é que as atrações menores tenham deixado de existir: ainda há os Adrianne Lenker, Bebel Gilberto, KEM, Don Bryant e outros nomes que você provavelmente perdeu por lá – e que têm, em média, 100 mil visualizações.
Mas com uma apresentação feita a do BTS, com 25 milhões de visualizações, a disparidade não passa despercebida. Quando todo mundo quer estar lá – ou de casa, estando “lá”–, a Tiny Desk se torna um festival cujos headliners estão em letras garrafais.
Claro – o crescimento da “plataforma” não foi difícil de enxergar, nem totalmente repentino: quando Tyler The Creator, Jorja Smith e outras potências passam pela Tiny Desk, vemos que ela começa a se tornar uma casa de shows pouquíssimo “tiny” – ainda assim, acho que uma das características que mais me empolgavam com o formato era que parecia escapar ao mainstream, flertando com um ou outro enchedor-de-estádio que tinha lá seu fator alternativo. Uma coisa é receber Paramore – outra, completamente diferente, é trazer Dua Lipa.
Repara no “escritorinho apertado” da cantora britânica, para a apresentação dela divulgada nesta semana. Agora compara com o show “tiny” que outro nome britânico, o Idles, fez no ano passado.
Na minha cabeça, foi Mitski lambendo a guitarra; Lianne La Havas botando o vozeirão pra conquistar aquelas 20 pessoas (ou sei lá quantas) presentes ao vivo; o sorrisão e o carisma da Tank, do Tank and the Bangas. Na minha opinião, foi tudo isso que consolidou a Tiny Desk como o palco que você adoraria se sentar logo em frente. Tudo bem, o negócio daria fila para entrar ocasionalmente, mas nada que faria fãs acamparem na porta. Afinal, a história da Tiny Desk não é de show-de-bar-transportado-pro-escritório?
Era. Mas, agora, o negócio é diferente – e eu me pego pouco empolgada com os anúncios que de fato chegam até mim sobre “o próximo Tiny Desk”, mais animada em explorar os vídeos de 2016.
Para não cair na amargura do “na minha época era melhor” ou do “era bom quando não era tão pop”, eu queria dizer que sei que cada coisa tem seu lugar – e eu gosto de ver uma ideia tão deliciosa dando tão certo. E tem um lado bastante interessante em tudo isso, que eu gosto de exercitar: assim, a gente repara como esses grandes artistas se tornam comparáveis aos “pequenos”.
Porque assim como nas lives deste ano, tivemos um momento breve em que muitos dos fogos de artifício desapareceram; com quase o mesmo parâmetro, podemos comparar Harry Styles a Seu Jorge, os dois em cenários similares partindo do mesmo princípio. Vemos que – com todo respeito a Dua –, perto da Dua Lipa, Liniker é muito mais negócio; mais cheia de alma, mais capaz de comandar uma salinha pequena. E não é a melhor coisa para o BTS, mesmo com todos os seus 25 milhões de visualizações: um grupo treinado para cantar e dançar não se sobressai quando todos os sete se sentam para fazer os vocais, sem que ninguém assuma um instrumento. Gosto deles, mas não é o tipo de show que eles fazem com maestria.
De certa forma, o crescimento da Tiny Desk ajuda na nossa perspectiva – não é tão bom para quem é gigante e não se lembra mais de como dominar o espaço pequeno. E sempre há o que garimpar, desde que você o faça com olhos atentos: a gente sempre cai na armadilha dos números, mas vale explorar.
Ao meu ver? Deixa os gigantes para os estádios.
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