Popload entrevista Maria Beraldo. “Colinho” foi o melhor álbum de 2024, na votação do site

Existem várias maneiras de entrar no universo da cantora, compositora e multiinstrumentista Maria Beraldo, catarinense radicada em São Paulo, autora do melhor álbum de 2024, segundo votação aqui na Popload. Ela é verdadeiramente uma artista de várias camadas, muitas visíveis e outras ainda a descobrir.

Você percebe tudo isso conversando com ela, como fizemos aqui para este texto, que saiu originariamente na mais recente edição da revista “Numéro Brasil” e é republicado agora na Popload.

Sobre qual Maria Beraldo você quer ler primeiro?

A que virou cantora em 2018, depois de tocar clarinete na banda do veterano músico Arrigo Barnabé, integrar o grupo que tocava para Elza Soares deitar seu vozeirão e ajudar a fundar seu próprio grupo derivado de suas jornadas com Arrigo, o Quartabê?
A Maria Beraldo que bota em suas músicas fortemente, bem explícita nas letras como uma postura de posicionamento mesmo, seu lesbianismo e, mais que isso, sua não-binariedade?

A artista que penetrou na música pequenininha por causa da família, quando teve processos de composição e arranjo desde seu processo de construção como ser humano, desde pequenininha na música erudita tocando clarinete, se arriscando no choro, no jazz, no violão e piano até chegar à faculdade, adolescente, e descobrindo o pop e a música eletrônica?

A Beraldo que finalmente estampou seu nome numa capa de disco primeiro com “Cavala”, o de estreia, quatro anos atrás, e agora, há bem pouco tempo, com o impressionantemente rico “Colinho”, disco de muitos tons e cores, de pessoas convidadas e sons plurais, de pop e MPB ao samba e funk?

A pessoa que canta, compõe, toca, co-produz seu disco, colabora no dos outros, anda fazendo trilha para o Balé Municipal, para espetáculo do teatrólogo Filipe Hirsch?

Nada melhor deixar que essas várias Marias Beraldos em uma só, a incrível Maria Beraldo, falem como quiserem falar:

“Olha, é um pouco difícil eu mesma posicionar esse meu disco, o “Colinho”, de algum modo. Porque quase que não tenho ângulo de distanciamento para enxergar, não tenho recuo pra ver a imagem, mas do que posso ver daqui sei que é um disco que puxa a corda da invenção. Vivemos em um mundo onde o mercado engole cada vez mais a produção musical – não a música em si porque ela é inengolível, mas há alguma tendência (por motivos de sobrevivência, inclusive) em se fazer música num fluxo de mercadoria. Artistas sendo esmagados pelo peso do sistema, Acho que com esse disco estou puxando a corda desse lado, junto com alguns outros amigos (e ídolos) que ainda topam se entregar e inventar.

“Sinto que Colinho é inventivo mas não hermético, muito pelo contrário: é um disco saidinho, que passeia e bebe de muitas sonoridades, habita o mundo dos instrumentistas, mas é acima de tudo um disco de canção. Acho que ele se localiza na cena de São Paulo, sim, que é onde estou, na companhia de uma turma de compositores que vêm fazendo canção por aqui e que consolidam algo notável. Ao mesmo tempo, acho que converso um tanto com o Rio também – chegam nesse disco três participações vindas do Rio (Ana Frango Elétrico, Negro Leo, Zélia Duncan. Tem Os Fita, tem o funk e o samba (que também são paulistas, mas não só), tem música PARA o Rio, e Tom Jobim e Chico batem forte como referência. Enfim, tem essa ponte-aérea. Aliás, ponte é uma palavra-chave para mim do que esse disco faz.

“Acho que ‘Colinho’ e o anterior, ‘Cavala’, são discos-irmãos. São passos numa mesma estrada. ‘Cavala’ é um disco de solidão, e falo isso com alegria. Com o Gilberto Gil aprendi que é preciso aprender a ser só. Ali fui muito só. E faz parte disso o entendimento de quem eu sou, a solidão tem papel nisso. A separação dos outros pra nos entender como indivíduo é dura, mas é fértil. No ‘Cavala’ eu estava descobrindo o pop, o eletrônico, tudo muito novo, e de alguma maneira quis deixar de lado o que eu vinha fazendo até então, tava entretida com as descobertas novas e ao mesmo tempo me emancipando das origens. No ‘Colinho’ pude olhar para trás, trazer as origens, chamar meus amigos, cantar junto. É como muitas flechas. Ou um lago, cachoeira, mato. Cheio de gente. Grandes amigos exímios instrumentistas, parcerias, samba e tudo. O ‘Cavala’ me deu a solidão, mas também me deu a comunidade. E eu abracei e fiz o ‘Colinho’ com ela (e para ela?). ‘Colinho’ é muito diverso, múltiplo, aberto, mais pop. E também mais ousado,  mais solto, ele é muito livre. ‘Cavala’ finca os dois pés no chão e ‘Colinho’ transita, passeia, percorre. Foi o ‘Cavala’ que inventou o ‘Colinho’.

“Olha, acho que ‘Colinho’ se afirma, se coloca e vem com força, vem com tudo, mas uma coisa meio assim, ele vem de skate, sabe? De prancha pegando onda. Acho que ele tem um relaxamento. Ele tem a liberdade de simplesmente ser e isso foi o ‘Cavala’ que construiu. ‘Colinho’ não quer levantar bandeira, um pouco porque isso cansa muito, mas também porque já não sente uma necessidade tão visceral, ou também talvez por estar mais em paz consigo, mais relaxado na existência (nem tanto, vai…). E é muito curioso eu achar desses discos uma prosopopéia de que ‘Cavala’ é um ser feminino e o outro masculino. E ele é mais solto e relaxado e livre e isso vai me dando uma raiva, porque no fundo tem a ver com isso tudo.

“A identidade de gênero é um assunto no meu disco. No ‘Colinho’ eu procurei a ‘Masc’ (a máscara, a masculinidade, nome da faixa 9) e venho encontrando. E não é à toa que venho encontrando aí minhas liberdades e relaxamentos também. Não só por eu ser quem eu sou, como indivíduo, mas por sermos o que somos como sociedade. Mas, enfim, ‘Colinho’ é auto-afirmativo, mas pelo caminho da sua existência livre leve e solta. Acho que descobri outros meios de hackear e assim fortalecer. Percorro os assuntos de identidade de gênero com um pouco mais de prazer e um pouco menos de dor.

“Essas coisas todas que eu faço, eu mesma estou para descobrir o que podemos esperar, porque sempre descubro no percurso. Mas estou muito feliz com meus cultivos. Todos esses universos me nutrem muito, são férteis para a minha pesquisa e ando estudando bastante também. Estudando composição de música de concerto, orquestração. Estudar abre minha cabeça, eu amo. Mas o meu foco de criação agora está na montagem do show do ‘Colinho’.

“Foi uma coisa que fui percebendo ao longo do processo e entendendo com a feitura do disco. Tem muitos aspectos do ‘Colinho’ que me mostram esse olhar para a minha infância. Não fiz nada premeditado ou querendo fazer esse movimento. Esse disco caminha junto com a minha análise (psicanálise). Acho que estou num momento de olhar para a minha infância. Deve ter a ver com questões de identidade (de gênero também, mas não só). Inclusive as letras em inglês eu associo ao fato de estar olhando para esse período da minha vida, e de eu ter sido alfabetizada antes em inglês do que em português, porque morei nos EUA dos 4 aos 6 anos. Tudo se mistura e as letras vieram em inglês, foi espontâneo. Daí tem esse fato de que minha família é de musicistas, e cresci estudando clarinete, ouvindo minha mãe estudar saxofone, minha irmã tocar flauta, meu pai violão, minha mãe compor ao piano. E minha vida musical começa na música instrumental, tocando choro, jazz, Hermeto, Pixinguinha. Quando cheguei a SP eu descobri o pop e me apaixonei. Mas agora eu quis voltar com todo o pessoal, trouxe piano, violão, muito baixo acústico. De novo, nada premeditado. Só me dava vontade de ouvir isso e fomos gravando. A imagem que eu vejo depois do disco pronto é essa, de que tem um olhar para a infância, uma puxada nesse fio, uma conexão desses mundos. De não precisar ser uma coisa ou a outra. poder ser todas ou nenhuma.” 

***
* As fotos de Maria Beraldo usadas para este post são de Ivan Nishita.