NETLOAD – Em nova seção, Popload convida músicos e/ou amantes da música para escrever para nós, sobre o tema que quiser. A estreia é com a psicanalista Aline Rubin falando das “melodias psicológicas do novo indie”

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* A Popload estreia seção nova hoje, que pretende movimentar nossa rede de contatos. A NETLOAD é a entrega do espaço do site para alguém que tenha algo a falar, no aspecto que quiser, do tema que nos move: a música.

Minha amiga Aline Rubin, ou melhor, Doutora Aline, que já encontrei em diversas pontas do mundo por causa de festivais de música, tem umas coisas a dizer sobre o movimento indie mental health, importante onda que domina a música independente (principalmente) seja aqui na CENA, seja na gringa (e aí considere EUA, Inglaterra, Noruega, Coréia, onde for…).

Essa “long read” incrível que a Aline nos proporciona, abaixo, juntando dois assuntos que a atrai muito, vem bem no dia em que a norueguesinha girl in red solta novo single, “Serotonin”, e a Arlo Parks tem veiculado o vídeo de sua apresentação para a gigantesca audiência da TV americana, em performance para a música “Black Dog”, de seu lindo e recém-lançado disco de estreia. “Black Dog” é uma espécie de apelido menos dolorido para a palavra “depressão”.

Timing is everything.

Valeu, Aline. NETLOAD estreou. Quem será o prxóximo convidado a escrever para nós, no “episódio 2”?

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“Os antenados nas novidades da cena musical indie internacional ou nacional já devem ter percebido uma tendência que vem chegando aos ouvidos da galera. O chamado “indie mental health” ou “indie saúde mental”, particularmente produzido por jovens da “geração Z”, traz novidades não só do ponto de vista do estilo e da qualidade técnica, mas (e o que me interessa particularmente aqui) o que suas letras estão nos informando sobre eles e o mundo e desses jovens no mundo de hoje.

Produzindo músicas “handmade” de dentro de seus cafofos, as músicas são repletas de referências em torno de questões de saúde (e sofrimento) mental e que se transformam em um poderoso instrumento de cura e de acolhimento, não só para quem elabora suas experiências traumáticas através da criação mas para quem escuta e se identifica com elas.

A música desses jovens artistas parece se tornar, talvez mais do que nunca, uma tradução das suas realidades, de uma experiência de si, que é ao mesmo tempo subjetiva (particular, interna) e real (fala sobre seus corpos no mundo contemporâneo).

O “gatilho” para escrever este texto foi o lançamento do disco lindíssimo da inglesa Arlo Parks, de 20 anos, “Collapsed in Sunbeams”. Negra e bissexual, Arlo é vista como ícone de uma nova geração e de grupos que hoje são chamados em alguns debates políticos de “identitários”, e também como embaixadora de pautas relacionadas à saúde mental, por falar disso nas suas músicas e por trabalhar ativamente em projetos sociais com esse tema.

Porém, a música não é desde sempre uma forma de traduzir, expressar ou sublimar (para usar um termo psicanalítico) os mal-estares de um tempo, de uma geração? A loucura e a angústia dos sujeitos no mundo não estiveram sempre lá, nas canções e nas composições dos artistas? Não parece haver dúvida quanto a isso.

Assim como seria leviano supor que a geração Z anda sofrendo mais do que a minha (Y ou “millenials”) sofreu na sua adolescência/juventude, como se tal comparação fosse possível de ser feita. Parece ainda haver continuidades nos dilemas que envolvem algo como uma transição da adolescência para uma juventude adulta e com a descoberta, as aventuras e frustrações do se relacionar (amorosamente, sexualmente, afetuosamente) com seus pares, seu grupo e com a sociedade em que estão inseridos.

Dilemas que, convenhamos, não necessariamente se resolvem ou terminam com a vida adulta. Mas, é verdade que o mundo mudou (possivelmente para pior, se considerarmos o contexto político global – e brasileiro – dos anos 2000), e que as formas de expressar o sofrimento também mudaram.

Mas o que chama a atenção nesse estilo musical e nas composições dessa nova galerinha é a forma e a narrativa utilizada por eles para nomear e expressar seus sofrimentos. Dentro dessa gramática, depressão, ansiedade e outros tipos de transtornos mentais (como bipolaridade ou borderline) são recorrentes, ainda que não necessariamente nomeados assim, como vemos na música “Black Dog” de Arlo (escrita sobre uma das suas melhores amigas). Sobretudo, vemos um relato de como esses “transtornos” são sentidos na pele e atravessam a experiência e as relações de cada um.

Just take your medicine and eat some food
I would do anything to get you out your room
It’s so cruel what your mind can do for no reason
[Black Dog – Arlo Parks]

Por mais que essa tendência não se restrinja aos mais jovens (aqui lembramos como Lady Gaga trouxe a público sua batalha com a depressão e doenças psicossomáticas e o reflexo disso nas suas criações, tudo documentado no “Five Foot Two”, da Netflix), a geração Z nasce já imersa em um contexto em que termos como “depressão”, por exemplo, são socialmente aceitos e capazes de descrever (e também classificar) uma determinada experiência de estar no mundo, uma forma particular e ao mesmo tempo compartilhada de sofrer.

Isso porque desde o início dos anos 2000 há uma importante consolidação da psiquiatria em aliança com as indústrias de psicofármacos, que em 2013 com o lançamento do “DSM edição V” (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) cria um verdadeiro catálogo de doenças mentais de onde ninguém sai ileso.

Nos últimos anos ainda, vemos esse vocabulário (ter depressão, ser bipolar ou ser borderline) ser também capturado por ideologias neoliberais que pregam um tipo de autocuidado, bem-estar e aceitação pessoal. Dentro dessa lógica, a ideia de “saúde mental” assume o lugar de um tipo de produto e um objeto de desejo.

O problema dessa visão é que o sofrimento psíquico pode facilmente pode cair num entendimento de que os adoecimentos psíquicos são problemas puramente pessoais, individuais, como se, assim como escreve Parks, “sua mente fizesse isso a você, sem razão”.

Assim, ser um “jovem com depressão” hoje em dia parece marcar um tipo de subjetividade e identidade contemporânea, em que intensos momentos de crise e desconexão com o mundo oscilam com períodos de euforia e que marcam, especialmente, um sentimento persistente de tristeza, isolamento, solidão, perda de sentido e apatia.

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Em “Hope”, Arlo (foto acima) fala dessa melancolia como algo que nasce com ela, como um buraco-negro existencial que não deveria estar ali [“I’ve often felt like I was born under a bad sign, wearing suffering like a silk garment or a spot of blue ink, looking for light and finding a hole where there shouldn’t be one”].

Na era da hiperconexão, dos textões, da liberdade de expressão, Arlo diz, na mesma música, da dificuldade em comunicar a profundidade de sua experiência. E, como um mantra inserido numa batida contagiante dessas que você fica cantando mentalmente depois que a música termina, repete: “You’re not alone, like you think you are”.

A internet e a expansão do mundo digital transformaram radicalmente a forma de construir laço social e de socializar. Para quem já nasceu atravessado pela virtualidade da telinha e das redes sociais, a noção de presença do outro e dos vínculos possíveis se dão em outra esfera. Agravada por uma pandemia que há um ano isola e priva ainda mais as relações pessoais&corporais, aumentando a mediação das pessoas com a tela e a imagem, cada vez mais são montantes de avatares / seguidores / corpos virtuais que constituem a rede que cria e define o sentimento de identidade, de valor de si e de reconhecimento.

Arlo gravou uma versão de “Creep”, um hit do Radiohead lançado em 1993, música que fala sobre pertencimento e sentimento de desadaptação. Talvez hoje não faça tanto sentido para essa geração cantar “I want a perfect body, I want a perfect soul”, porque o desejo de ter o corpo e a alma perfeita já caiu de moda. Hoje se fala em aceitar o corpo que se tem, e a mente do jeito que é ou que pode ser.

Poetisa desde pequena, Arlo abre o disco com algo como um “statement”, dizendo que “We’re all learning to trust our bodies, making peace with our own distortions”. Mas, a aceitação não continua, inevitavelmente, passando pelo outro, pelo laço social? Ainda, nesse espelhamento que mistura criador e criatura, que aproxima ídolos e fãs, esse não se torna um novo horizonte de ideal: “Me diga, como é que você faz para se aceitar/ Sentir-se aceita, da forma que é?”.

Na música “Green Eyes”, Arlo fala da dor de um relacionamento que termina em função da violência homofóbica: “Of course I know why we lasted two months/ Could not hold my hand in public. Felt their eyes judgin’ our love and beggin’ for blood I could never blame you darling”.

Para uma geração que se insere mais “naturalmente” dentro de uma lógica não-binária de gênero, mas que circula e vive em uma sociedade ainda em guerra (ou em paz!) com um regime patriarcal, machista e segregador e violento, como sentirem-se aceitos? Talvez, somente dentro de seus quartos, do seu mundo privado, particular. E é aí que a música se torna uma potência que, graças a essa mesma ferramenta que expande – ao mesmo tempo que dissolve – os laços, alcança o mundo e cria um senso de comunidade global.

Arlo Parks, uma importante representante dessa geração do indie mental health, começou a ser reconhecida como uma “Embaixadora da Saúde Mental”, mas não só porque atua em campanhas que oferecem suporte a pessoas que estão passando por crises e sofrimento psíquico. Também porque vê sua música como um instrumento terapêutico, uma forma mais saudável de estar no mundo, de se comunicar e fazer laço com aqueles que passam por violências e sofrimentos semelhantes ao seu.

Ao fazer isso, jovens como Arlo Parks não só nos dão possibilidades de ouvir e desfrutar de novas estéticas sonoras, trazendo mais beleza a essa barra que anda nossa vida, mas também fazendo da música uma importante ferramenta para entender um pouco sobre as transformações sociais, culturais e políticas quem vem atravessando nossa sociedade atual.”

** Aline Rubin é, nesta ordem, fã de música e psicóloga e psicanalista, Mestre em Estudos Psicanalíticos (Birkbeck, University of London) e Doutora em Psicologia Social pela USP.

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