Especial Popload: os 10 anos do disco de estreia do Frank Ocean

Neste final de semana, mais precisamente ontem, domingo, foi comemorado o aniversário de 10 anos do excelente “Channel Orange”, o álbum de estreia do rapper americano Frank Ocean, disco “acusado” de levar o hip hop para outras dimensões, não só musicalmente.

Para celebrar esta década de “Channel Orange”, trazemos à Popload um texto do jornalista e músico Daniel Setti, que vive em Barcelona e está desenvolvendo um projeto literário com os principais discos da música pop dos últimos anos. E, obviamente, o disco de estreia do Frank Ocean faz parte de sua lista.

O texto, sobre o contundente “Channel Orange”, é este abaixo.


por Daniel Setti

Corria o primeiro semestre de 2011 quando Shawn Carter, o Jay-Z, introduziu um CD no equipamento de som de um de seus carrões. Queria apresentar à esposa, Beyoncé Knowles, as produções de um jovem cantor, rapper e compositor de 23 anos que lhe havia impressionado. Em plena produção de seu novo álbum, “4”, a Queen Bey não esperou até o fim da última faixa para ordenar ao marido: “Coloque este cara num avião o mais rápido possível”. 

O novo xodó do casal mais poderoso do showbusiness atendia pelo nome artístico de Frank Ocean e o motivo da paixão súbita da rainha do pop era “Nostalgia, Ultra”, a mixtape – na acepção contemporânea do termo, uma espécie de disco extraoficial com samples não autorizados – divulgada por ele em seu próprio tumblr (sim, era a época deles) em fevereiro daquele ano. 

Antes de que percebesse, Ocean, nascido Christopher Edwin Breaux em Long Beach, Califórnia, a 28 de outubro de 1987, havia emplacado a canção “I Miss You” no quarto trabalho da cantora, lançado em junho de 2011, dividindo créditos com ela e Shea Taylor. Um mês depois, aparecia em outro peso-pesado discográfico, “Watch the Throne”, desta vez de Jay-Z, em parceria com o outro capo di tutti capi do rap no século 21, Kanye West, como coautor e vocalista da faixa de abertura, “No Church in the Wild”.

Cinco anos antes, em 2006, Ocean já vinha começando a colher os frutos de sua labuta de produção de hip-hop e R&B. Mas, por causa da tragédia do furacão Katrina, viu-se obrigado a trocar a New Orleans onde crescera por Los Angeles. Em 2008, ainda assinando como Lonny Breaux, teve canções gravadas por Brandy (“1st Love”) e John Legend (“Quickly”). Justin Bieber recrutou seus serviços no ano seguinte (“Bigger”), época em que assinou contrato de artista solo com a banda Def Jam.  

Só que, “colocado na geladeira” pela mítica gravadora, precisou continuar na correria. Isso significou, entre outras coisas: aderir à Odd Future, banca de rappers que revelaria figuras-chave para a década de 2010, como Earl Sweatshirt e Tyler, The Creator; adotar o novo pseudônimo, uma referência a Frank Sinatra e seu personagem Danny Ocean em “Ocean’s Eleven”, filme de 1960; e lançar, por sua conta e risco, assim, como quem não quer nada, “Nostalgia, Ultra”.

Com narrativas que prendem a atenção do ouvinte, samples surrupiados de Radiohead, MGMT, Coldplay e Eagles e, sobretudo, uma voz carregada de emoção e melodias decididas, a mixtape chocava. Ao final do ano, figurou não só na lista de favoritos do matrimônio Carter-Knowles como também nos rankings de melhores discos de publicações como “Pitchfork” e “Mojo”. Tudo isso mesmo sem ser tratada como um lançamento oficial. Dava para cortar com uma faca o arrependimento da Def Jam, que tentou compensar a cagada lançando dois singles do repertório que renegara. Um deles, “Novacane”, chegou ao 17º lugar da parada de hip-hop e R&B da “Billboard”, e ao 82º da principal.

“Tenho me sentido muito mortal ultimamente, então de agora em diante quero fazer tudo num patamar de excelência.” Em uma entrevista do final de 2011 ao “Sound of 2012”, programa televisivo e premiação da BBC que celebra as apostas para o ano seguinte, Frank Ocean antecipava, de forma curiosamente não arrogante, o que estava prestes a aprontar. O mundo ainda absorvia o impacto de “Nostalgia, Ultra” enquanto ele já preparava o sucessor, que desta vez iria ganhar o mundo como Deus manda, pelas mãos e pelo bolso da Def Jam. 

Gravado em diferentes estúdios mastodônticos de Los Angeles, entre os quais o East West Recording (onde Sinatra registrou “My Way” e os Beach Boys fizeram “Pet Sounds”) e o Record Plant (que acolheu Rolling Stones e Madonna), “Channel Orange”, o primeiro álbum propriamente dito de Frank Ocean, surgiu exclusivamente no iTunes em 10 de julho, após o lançamento de três singles. Passou às outras plataformas de venda digital uma semana depois e, posteriormente, emergiu também em CD e vinil, ressaltando o labor gráfico da capa alaranjada dos designers Thomas Mastorakos e Aaron Martinez.  Na noite anterior ao lançamento, Frank apareceu no programa “Late Night with Jimmy Fallon” à frente da disputa da banda da casa, The Roots, e de uma orquestra. Cantou a nova “Bad Religion”.

A pompa da ocasião estava à altura da ficha técnica do LP, povoada por astros do quilate de Andre 3000 (Outkast) e John Mayer, os companheiros em ascensão Tyler e Sweatshirt, craques de estúdio como o baterista Matt Chamberlain, coprodutores de fino trato da laia de Malay (Big Boi, Jamie Foxx) e Om’Mas Keith (Chic, Jay-Z), além do superprodutor e estrela pop Pharrell Williams.

Disco que amadurece no coração do ouvinte pouco a pouco, “Channel Orange” é o manual do que deu certo na segunda década do século 21: melodias pensadas com o flow do rap, rimas de insinuação melódica na dose certa, instrumental orgânico equilibrando-se entre o fetiche vintage e a tecnologia de ponta, arranjos brilhantemente enxutos – daqueles tão bem feitos que até parecem simples –, captação de som fora de série, realce na emoção da interpretação e uma temática lírica de rápida assimilação, ao mesmo tempo elegante, sagaz e urbana. A partir dele, Frank passaria a ser frequentemente lembrado como um dos letristas de sua geração. “Para mim, tudo começa com as histórias; mesmo nas partes sem letra, tento criar uma fotografia”, revelou à BBC o cantor, entusiasta de Stevie Wonder, Beatles e Beach Boys. 

Após a desnecessária vinheta “Start”, o tracklist começa meio preguiçoso, mas já irresistível, com o primeiro single, “Thinkin bout You”. Balada R&B de memorável melodia em falsete, a canção já aparecera para o mundo no ano anterior, na voz da cantora Bridget Kelly. Lançada em 17 de abril, quase três meses antes do disco, a versão do próprio compositor chegou ao 32º lugar nos Estados Unidos. 

Depois surge “Fertilizer”, um pedacinho de joia pop sessentista que Ocean cortou pela metade só para mostrar que tinha canções de sobra, antecedendo “Sierra Leone”, outra belezura suave do verso “Eu te canto uma cantiga do Lennon”. Já a funkeada “Sweet Life”, composta com Pharrell e editada como single em 6 de julho, aponta o dedo para o mundo no qual o moço adentrava na vida real, o dos ricos. “Você teve um jardineiro e uma empregada desde que nasceu”, diz em uma passagem. A mesma temática aparece duas faixas depois, em “Super Rich Kids” (“Garrafas demais destas que não podemos pronunciar” e “Garotos super ricos com nada, a não ser amigos falsos”), espécie de marcha lenta e progressiva, pontuada pelas rimas de Frank e com participação de Earl Sweatshirt. Também seria música de trabalho, mas já em março de 2013.

Um dos pontos fortes do lirismo oceânico, a observação de personagens da fauna metropolitana norte-americana, dá também o tom da sofisticada “Pilot Jones” (“Ela veio tropeçando no meu gramado novamente/ Não sei por que tento manter uma mulher adulta sóbria”) e, principalmente, do balanço “Crack Rock”.  Inspirado nos relatos que ouvia nos grupos de narcóticos anônimos comandados por seu avô materno, aqui Ocean narra a saga de um cidadão que “saía com uma loira” em outra era, mas que acabou “fumando pedras em casas abandonadas”. Só que ele o faz de uma maneira tão estilosa e refinada que quase dá para esquecer o peso do assunto tratado. 

Engatilha-se então a mais surpreendente canção do álbum, “Pyramids”. Com seus quase 10 minutos de duração, partes totalmente distintas entre si, mood épico e letra que promove uma analogia entre Cleópatra e uma stripper,é, guardadas as diferenças estilísticas, a “Paranoid Android” dos anos 2010. Até porque, como a multifacetada suíte do Radiohead, “Pyramids” foi, contra as recomendações de todos os manuais pop estritos sobre duração de canções, também lançada em single, a 8 de junho. Depois de uma parte que lembra hits cafonas do concurso Eurovision – seguramente uma provocação subliminar de Frank –, ela evolui a um embalo electrofunk tocado com baixo-teclado que traria Bernie Worrell ou Rick James de suas tumbas a qualquer momento. Depois, atravessa um interlúdio etéreo, até embocar numa batida de trap lento e um refrão difícil de esquecer: “She’s working for the Pyramid tonight”.

Neste momento, quando até o mais cético já está rendido, explode “Lost”, uma canção pop perfeita, road song que cita nominalmente Amsterdã, Espanha, Índia e Tóquio, e que, certamente já foi dançada por muita gente nesses lugares (53º lugar no Reino Unido). Promovido como quarta faixa de trabalho em dezembro, é sem dúvida uma das músicas da década passada. E isso porque ainda estão por vir belezuras como “Forrest Gump”, de magia feita com pouco; a sempre bem-vinda safadeza de Andre 3000 no suingue lento “Pink Matter”; e “Bad Religion”, com seu início a la Prince, diluído em órgão Hammond, e um eu-lírico implorando: “Taxista, seja meu analista por uma hora/ Deixe o taxímetro rodando”. A balada encaminha a seguir uma senhora descrição do amor: “Se me põe de joelhos, é uma má religião”.

Não bastando todo o pedigree de Ocean e a expectativa que gerava desde o ano anterior, na semana prévia ao parto de “Channel Orange” ele utilizou o mesmo tumblr velho de guerra para publicar um texto seu, escrito cinco meses antes, no qual abordava uma relação amorosa sua com outro homem. Gerou enorme polêmica, afinal o seu nome estava ligado ao historicamente homofóbico hip-hop, alimentando ainda mais o interesse pelo LP e por seu autor.

Mas, ao mesmo tempo, o episódio fortaleceu o profile então já reservado do cantor, que a partir dali se recusou a discutir sua vida pessoal, evitou ao máximo falar com jornalistas e foi ficando cada vez mais na sua. Para divulgar “Channel Orange”, Frank fez menos de 20 shows e aparições promocionais, cancelando várias outras. No ano seguinte, deletaria sua conta do Twitter logo após ser perguntado sobre sua suposta bissexualidade pela revista “GQ”. 

“Channel Orange” subiu ao número 2 da parada da “Billboard”, encabeçou dezenas de listas respeitáveis de fim de ano e levou o Grammy de melhor disco de urban/contemporary em 2013. Ao final da década, figuraria nos top 10 de todas as publicações mais importantes, e a seguir, em 2020, seria incluído na relação de 500 melhores de todos os tempos divulgada pela “Rolling Stone”. Para um astro millennial vivendo no topo do mundo, portanto, nada mais chocante do que uma saída súbita de uma grande rede social. Os anos vindouros mostrariam que aquele bate-papo com a BBC fora um dos poucos protagonizados por Ocean na esfera pública.

Nascia com força mais um mito do artista-genial-autossuficiente-renovador-do-soul-com-aura-excêntrica, enigmático e relutante a lugares comuns, honrando linhagem inaugurada por Prince nos anos 1980 e perpetuada por D’Angelo e Erykah Badu na virada do milênio. Daqueles que fazem período sabático por tempo indeterminado e que, quando ameaçam voltar à ativa, fazem o mundo prender a respiração de tanta excitação. Incensado e complexo a ponto de demorar outros quatro anos – um deles só de atraso e enrolação – para lançar o trabalho seguinte, o espetacular “Blonde” (2016), que o site “Pitchfork”, por exemplo, cravou como o melhor da década de 2010. 

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* Daniel Setti é jornalista, músico, DJ e curador musical paulistano radicado em Barcelona desde 2006. Em São Paulo, foi baterista das bandas Jumbo Elektro e TchucbandioniS, tocou com Elza Soares e o saudoso rapper americano Guru e ajudou a criar o selo Reco-Head. Em Barcelona, presenciou 15 edições do Primavera Sound, cobrindo metade delas como jornalista. Atualmente atualmente toca na banda Elora.

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Em 2021, publicou aqui na Popload um longo texto sobre o “Is This It”, álbum de estreia da banda The Strokes. Tanto aquele quanto este texto da estreia em disco do rapper Frank Ocean faz farte de um projeto literário de Setti dedicado a grandes discos.

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