CENA – Entregando o passado, o presente e o futuro, festival Se Rasgum comemorou seus incríveis 20 anos em setembro, com Teenage Fanclub, Valesca Popozuda e grande elenco

Estávamos devendo esta aqui.

Cop 30? Que Cop?

Em setembro, o festival Se Rasgum, em Belém do Pará, fez seu festão de 20 anos com uma programação parruda que movimentou uma semana inteira de mesas, palestras, shows gratuitos, incentivos e exposição da cena da Amazônia, da Região Norte, do Pará, do Brasil todo. E tudo culminando num sábado no Porto Futuro, em uma intensa tarde noite recheada de bons shows e diversidade até a amanhã de domingo. O nome do local não é fortuito, no caso do Se Rasgum.

A estrutura da arena, novo local do festival e pronta para receber pelo menos 5.000 pessoas, estava redonda, sem filas para nenhum serviço e com ótima oferta de bebida e comida para geral. O melhor: muitas das comidas eram típicas da região, o que distingue o Se Rasgum da esmagadora maioria dos festivais brasileiros, tornando-o atrativo para “muito além da música”.

Os shows em si começaram pontualmente às 17h com o The Monic (SP) convidando a Keila Gentil. Deu onda tanto na Keila defendendo os vocais no rock das paulistas como nos vocais de apoio das meninas roqueiras locais da Galera da Laje, já clássica do repertório da Gang do Eletro.

Assussena veio em seguida e demonstrou ser uma das grandes cantoras de sua geração. Repertório afiado e experimentações muito interessantes com a obra do Roberto Carlos. Um dos melhores shows de todo o festival.

A espertíssima cantora e performer carioca Julia Mestre veio ao Se Rasgum trazer sua onda oitentista com um enorme carisma e um pack de boas canções novas de seu mais recente disco, “Maravilhosamente Bem”, lançado em maio deste ano. Canções essas defendidas muito bem por uma banda azeitadíssima. Se Julia passar perto de você, vale o confere demais. O baile do Mestre Cupijó completou o primeiro terço do Se Rasgum em casa e com uma metaleira afiada, ainda que se organizando nos PAs no decorrer do show. Mas no fim mandou muito bem seu recado.

O grande destaque do dia, e o dia/noite do Se Rasgum estava ainda no começo, digamos, ficou à cargo do trio Crizin da ZO. Do subúrbio do Rio de Janeiro, os rapazes fazem um espécie de funk soturno hardcore e espantou (ou acordou) a audiência menos atenta. Foi como se o Aphex Twin encontrasse algum bonde do funk periférico carioca. Até batismos como “o novo mangue beat só que do Pará” foi colocado nas conversas. Resumindo: esculacho, pra frente e PODEROSO.

Rio-Belém. Os cariocas Julia Mestre, acima, e o trio Crizin da ZO foram dois bons destaque do último Se Rasgum

Já com doa audiência na arena, a turminha paulistana da Sophia Chablau e uma Enorme Perda de Tempo foi bastante prejudicada pela mixagem do sistema de som. Talvez por não ter conseguido levar um técnico próprio. Como já vi várias vezes, aproveitei parte do show para comer, beber e dar uma volta pela espaço. Devo vê-los de novo em breve em Brasília num dia melhor.

O Terraplana, de Curitiba, mandou suas camadas de guitarra shoegaze para um público atento. Tudo em ordem, fizeram bonito. A banda tem tocado cada vez melhor e mais segura ao vivo. E os paranaenses foram um caminho interessante proposto pela curadoria para entregar um dos grandes momentos dos 20 anos de história do Se Rasgum: o show dos escoceses Teenage Fanclub. Teenage Fanclub em Belém do Pará, pensa. Uma das guitarras mais legais do indie na terra da guitarrada.

Com sua simplicidade lírica e paredes de guitarras que influenciam gente por décadas, a banda está para o indie na onda inventiva o que os Ramones representam para o punk. Ajudaram a moldar o estilo como conhecemos. Na platéia tinha gente de vários cantos do Norte e Nordeste para acompanhar o recital indie-lírico inglês no calor amazônico. Foi um deleite, um presente de 20 anos perfeito para os fãs do festival, ainda que alguns não dessem conta de quem eram aqueles tios branquelos no palco.

Acima, Sophia Chablau e banda, de SP, em ação no festival paraense (de uniforme e tudo); abaixo, a atração internacional do Se Rasgum, a banda de heróis indies Teenage Fanclub, da Escócia

A narrativa do festival mudou daí em diante.

Se tem uma coisa que o paraense sabe fazer e gosta é de festa. Depois de muito tempo longe dos palcos, o Se Rasgum recebeu o grupão brasiliense Móveis Coloniais de Acaju para talvez o show mais aclamado da noite. Que festa bonita! Que banda necessária. Eu estava morrendo de saudade. A doideira pop do grupo contagia sempre. Espero que gravem músicas novas e continuem na estrada.

O grau se manteve alto com Suraras do Tapajós tocando um carimbó poderoso, belíssimo visualmente, fazendo geral rodar no dancê amazônico. A excelente cantora paraense Lia Sophia foi a convidada da apresentação e esquentou ainda mais o que já estava bom.

O último show que consegui ver foi o da Fernanda Abreu. O que foi isso? Fui pego de surpresa com uma das melhores performances de toda a noite. A carioca desfilou clássicos que soaram muito atuais. Essa nova onda do house no Brasil que tem chegado, tem o nome de onde beber na fonte: Fernanda Abreu do Rio de Janeiro.

Do luxo ao lixo, a dobradinha Fernanda Abreu / Valesca Popozuda manteve o funk e Irajá em voga no evento. Acompanhada de DJ e de dançarinos, a funkeira abriu seu show mandando, de cara, sua carta de intenções, o hino “Beijinho no Ombro”. Na sequência, perguntou ao público paraense: “Quem aqui conhece poesia cústica? Não é acústica, é cústica?”, para risos da plateia, deixa para mandar ao vivo o single lançado no primeiro semestre, que diz: “Quer fazer mulher contente? Quer fazer mulher feliz? Não faz o coraçãozinho, abre o app e faz o pix”. Chora, Trump! Os hits funks se atropelam: “Eu Sou a Diva Que Você Quer Copiar”, “Festa na Baru”, “Proibidona” (“Meu Nome É Valesca e Dou Aula de Putaria”) enquanto seu DJ solta proibidonas de Dennis e DJ Dollynho da Lapa.

As interações são um caso à parte no show: rola desde “eu te amo” até “eu quero meter”, no que Valesca não desperdiça a bola levantada, e corta: “Se meter em mim vai ser melhor”. Em outro momento, ela desce pra galera e pergunta: “Desde a Gaiola das Popozudas, eu nunca deixei de ser o quê?”. As respostas começam tímidas com “gostosa” e “safadona”, mas logo chegam em “piranha”, “tesuda” e “puta”. Quando retorna ao palco, ouve mais um “elogio”: “Não acredito que vocês esperaram eu subir pra falar que eu sou ‘bucetuda’. Tão com vergonha?”. É, meu povo, só tiro, porrada e bomba na madrugada de BellHell.

Cada qual na sua, as agitadoras dance Fernanda Abreu (acima) e Valesca Popozuda (abaixo) carregaram de pop a edição de 20 anos do Se Rasgum

Já passava das três e meia da manhã quando AQNO e RAWI entraram em cena numa das apostas mais ousadas do festival neste ano: juntar no palco dois nomes emergentes da cena queer do Norte, que ainda estão construindo público (AQNO tem cerca de 10 mil ouvintes no Spotify enquanto RAWI soma pouco mais de 200 fãs), mas cujo trabalho já surge extremamente bem delineado. De Santarém, RAWI lançou em 2024 o disco “A Arte de Ser Bicha” com apoio da Natura Musical. Já AQNO, de Marabá, está em pleno trabalho de divulgação de “Latino Brega Love”, disco que saiu em abril. Juntos em cena, e acompanhados de um grupo de dançarinos, a dupla promoveu um espetáculo extremamente dançante (a turma da aeróbica que começou lá no show da Fernanda Abreu ganhou uma madrugada para não botar defeito) que combinou brega, cumbia, lambada, reggae, pop, teatro e suor – com direito a troca de roupas e muita coreografia em um show que merece ser replicado em outros palcos.

Fechando a noite, ou melhor, se preparando para a chegada do nascer do Sol, Otto não apenas trazia a tiracolo seu disco mais emblemático, como também tinha a tarefa de rememorar um dos shows mais icônicos da história do Se Rasgum: em 2010, o galego pernambucano entrou em cena com o dia já claro, e fez um show que até hoje é lembrado em conversas na cidade. Não à toa, quando o festival anunciou a grade de horários em seu perfil oficial no Instagram, e muitos fãs reclamaram do adiantado da hora (o previsto era de que Otto entrasse às 3h30, mas seu show começou quase às 4h30 da manhã), o próprio Otto chegou comentando e convidando: “Prometo um grande show”. Bem, fica fácil manter a promessa quando o show tem como base um dos discos brasileiros clássicos deste século, “Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos” (2009) e uma dupla de guitarristas como Junior Boca e Guri Assis Brasil à disposição. Ainda assim, quem esperava uma performance mais caótica (a fama precede o homem) ganhou um Otto mais focado, o que em termos musicais deixou o show ainda mais redondo, encerrando a maratona de shows do Se Rasgum 2025 de maneira especial.

Dez horas de arena e 20 anos de Se Rasgum mostraram como é necessário para as suas cidades esse tipo de festival, que constrói memórias e faz pontes entre passado, presente e futuro, mantendo muito viva a música brasileira (não só), seja ela de qual época for.

O Se Rasgum é especialista nisso. Viva o Pará!

O pernambucano Otto, que entrou na madrugada e foi até o dia claro para encerrar o Se Rasgum 2025 em Belém

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* Este textão sobre o Se Rasgum foi feito a quatro mãos. Na primeira parte, do princípio ao show da Fernanda Abreu, são palavras do nosso colabortador festivaleiro Anderson Foca, ele mesmo o produtor de outro importante festival do Norte-Nordeste brasileiro, o DoSol, de Natal. De Fernanda para baixo, quem escreveu foi o “brother das antigas” Marcelo Costa, o editor do valente, resistente e importante site Scream & Yell.

** Todas as fotos deste post são do Marcelo Costa, inclusive a da cantora Julia Mestre, que ilustra a chamada da home para este texto.

*** A Popload esteve em Belém a convite da produção do Se Rasgum.