Como podemos definir o caminho até o ponto de virada para um artista independente? A cantora paulista Liniker, que encerrou ontem à noite a primeira parte da turnê de seu segundo álbum solo, o festejado “Caju”, com TRÊS datas esgotadas no Espaço Unimed, é um ótimo exemplo para fazermos esse exercício.
Em um mercado musical que foi profundamente impactado pela pandemia, mas que segue atingindo números crescentes de ganhos financeiros e lançamentos, a estratégia para se destacar em meio a tudo parece nebulosa para quem olha de fora.
Com sua banda, Liniker e os Caramelows, a cantora paulista de apenas 29 anos conseguiu atingir um sucesso moderado.
Esse foi majoritariamente focado na CENA independente, onde o grupo teve um bom retorno em relação a seus dois álbuns de estúdio, encerrando sua existência no que muitos considerariam um auge, tocando em festivais pelo Brasil e sendo um atrativo interessante em eventos musicais diversos, até hoje mantendo uma média de mais de 500 mil ouvintes mensais.
Foram as decisões que Liniker tomou para si a partir do encerramento desse ciclo que começaram a formar o caminho que a levaria para as impactantes conquistas com “Caju”. Vamos por partes.
A primeira resolução de destaque dela foi participar do projeto “Acorda Amor”, com direção artística de Roberta Martinelli e Décio 7, que uniu Liniker, Letrux, Luedji Luna, Maria Gadú e Xênia França em releituras de clássicos de amor da música brasileira, lançado em 2019.
Nessa união com outras artistas, Liniker já expandiu seu público, mas ainda tinha sua identidade muito atrelada a outras artistas da CENA. Esse cenário muda bem em 2021 quando estreia a série “Manhãs de Setembro”, estrelada pela artista, no Amazon Prime. Como protagonista de uma série com distribuição internacional, a cantora e atriz paulista ganha destaque ainda mais fora de sua bolha.
A série, que conta a experiência de uma mulher trans e reforça a própria identidade de Liniker, teve duas temporadas e chegou a ser indicada ao GLAAD Media Award, prêmio americano de produções com temáticas LGBT.
Essa consolidação identitária, como mulher preta e trans, é essencial para a construção da história de Liniker. Foi a partir daí que a artista escolheu estrategicamente a quais marcas publicitárias se alinharia, sem parecer que estava se vendendo, e assim, conseguindo sustentar sua jornada como artista independente.
Ao lançar seu primeiro álbum solo, “Indigo Borboleta Anil”, ainda em 2021, Liniker já entra em sua carreira individual com as fortalezas de um público cativo na CENA, uma amplitude de alcance graças a sua série e marcas de renome nacional, como a cerveja Eisenbahn e depois a “brand” de cosméticos Natura, mas ainda assim mantendo um controle sobre sua carreira, fazendo um turnê mais simples e se pautando principalmente na participação em festivais para conseguir ter um alcance nacional.
Na sequência do seu primeiro disco, veio também seu primeiro Grammy Latino. Ao vencer na categoria Melhor Álbum de Música Popular Brasileira, Liniker tornou-se a primeira artista brasileira transgênero a ganhar o prêmio.
A formação da persona artística da Liniker, de alcance nacional, reconhecimento internacional, mas ainda assim acessível e representativa da sociedade moderna brasileira é a grande responsável pelo sucesso absurdo de “Caju”, seu segundo álbum solo, lançado em agosto deste ano.
Não foi do dia para noite. Foram anos de construção, de entender qual seria seu caminho, de fazer as escolhas certas e de se apresentar para o público como quer ser vista: a artista pop da música brasileira, a sua maneira.
Em “Caju”, Liniker foi contra muitos preceitos estabelecidos pelo mercado da música, desde fazer um disco com músicas que duram mais de 2:30 min ao fato de que as canções, muitas das quais são bastante sentimentais e lentas, não foram feitas para a lógica das dancinhas pop das redes sociais.
Mas, ao se manter fiel a seu processo, trazendo de novo parceiros de produção como Gustavo Ruiz e Fejuca, que também produziram seu primeiro álbum, Liniker deu um passo certeiro em direção a um público que estava pronto para receber uma estrela pop trans e preta.
Dois dos maiores indicadores que comprovam isso são os números surpreendentes de ouvintes desde a estreia de “Caju”, que já passam dos 9 milhões em apenas dois meses desde o lançamento, e a demanda absurda do público para seus shows. Com três datas esgotadas em menos de 30 minutos cada no Espaço Unimed, com capacidade para 8 mil pessoas, em São Paulo, e uma demanda para lotar pelo menos mais um, se quisesse, Liniker mais uma vez mostrou que tem um público muito atento e consumidor de seu trabalho.
A turnê de “Caju” é um ponto de inflexão na carreira de Liniker. Em parceria com o selo Coala Music, a artista paulista está produzindo seus shows mais elaborados e que consolidam definitivamente sua imagem de estrela pop. Dividido em quatro atos, com direito a naipe de sopros, quarteto de cordas, backing vocals, uma banda impressionante e muitas trocas de roupas, Liniker apresenta seu trabalho no formato que imaginou e a altura de muitos artistas internacionais.
Falam que a performance de ingressos dos três shows no Espaço Unimed, finalizado ontem à noite, rendeu a Liniker um convite ousado: estrelar um show próprio em uma arena, a do Allianz Parque. Liniker teria recusado. No desenho que faz em sua carreira, agradeceu, mas disse que ainda não está na hora.
***
* As fotos de Liniker usadas para este post são de Carolina Andreosi, do primeiro show da artista no Espaço Unimed, em SP.