* O rapper Emicida, que já dividiu um palco com o deus Iggy Pop lá atrás num Popload Festival, já escreveu sobre quando encarou a própria miséria, a perda de amigos e do pai, mas nunca soou tão triste quanto em “Ismália”, uma das faixas de destaque de seu recém-lançado novo disco, “AmarElo”.
Sobre racismo, então, Emicida já escreveu de várias formas, entre sons mais diretos ao ponto e outros mais amplos que tangenciavam o tema, mas talvez nunca tenha retratado tão bem a destruição psicológica por conta da frustração que o preconceito gera.
“Ismália”, nossa faixa de destaque da vez, que tem participações especiais de Larissa Luz cantando e da atriz Fernanda Montenegro declamando, é uma pancada dura.
De primeira, “AmarElo”, o novo álbum, parece propositivo, até otimista ao encarar o mundo neste fim de ciclo sem ódio, embora atento a todos os problemas – racismo, violência, o fim do mundo por conta da destruição do meio ambiente. A sugestão do rapper parece ser que só dado o valor necessário à luta de todo brasileiro é que a equação da enrascada será solucionada.
Entre tantas questões a serem resolvidas, Emicida entende, por exemplo, que ninguém terá compaixão por mais um jovem negro assassinado enquanto ver ali só mais um corpo anônimo no chão. É preciso cantar a vida deste herói do cotidiano para quem sabe talvez assim mudar o sentimento de quem ainda presta.
Então, em diversas músicas do disco, parece que ele conta a história desse herói, dos sonhos desse herói, não de sua derrota.
Nada disso é explícito, lógico. (Aliás, o que o disco mais faz é dar conta de músicas com mensagens sujeitas a muitas interpretações. Ouça repetidas vezes “Paisagem”, que fala sobre paz em um cenário questionável, e “9inha”, que não é uma love song, não. É sobre violência, sobre armas.)
Só que a dor desse personagem está em “Ismália”. Aqui Emicida olha para o espelho, encara a si próprio e vê Ícaro aconselhar: “Não chegue perto do sol”. O rapper vê que está encurralado. Perde se perder. Perde, se vencer também. Está dada aqui a dimensão do racismo no Brasil. No mundo. Não tem vitória plena enquanto existir racismo. Sucesso, diploma, emprego, nada traz segurança enquanto a cor da pele for um alvo. Entendendo que essa reflexão está na mente do herói do cotidiano celebrado no disco, que tem suas filhas, seus amigos, sua rotina, seu trabalho, o amor, compaixão, religião, suas viagens de férias, aqui descobrimos que ele é negro e vemos o soco que é ele sacar que tudo que construiu é nada diante do racismo.
Na poesia de Alphonsus de Guimaraens, poesia que dá nome à faixa e é recitada por Fernanda Montenegro na música, Ismália delira. Ao crer que poderia alcançar a lua do céu e a lua do mar ao mesmo tempo, morre afogada. Emicida entende que todo negro está na mesma condição de Ismália. Sem escapatória. Se vencer nos termos do brancos, “É um hipócrita”, na maneira que o MBL gritou quando viu o Emicida com um terno. Se for visto com droga, “Ih, eu avisei”, dirá o algoz. Se for parado com uma bala, vira suspeito, alguma coisa deve ter feito.
“80 tiros te lembram que existe pele alva e pele alvo
Quem disparou usava farda (Mais uma vez)
Quem te acusou nem lá num tava (Bando de espírito de porco)
Porque um corpo preto morto é tipo os hit das parada:
Todo mundo vê, mas essa porra não diz nada”
“Ismália” dá essa dimensão do racismo e opta por terminar sem oferecer qualquer solução ao problema. Na música e no álbum, Emicida dá a dimensão da vida dos negros no país, mas também podemos ver paralelos dessas histórias na vida de todas as minorias, de todos os trabalhadores que fazem milagres com salários que não dão para ser poupados de tão curtos. Marginais que não vão ser heróis.
Ainda assim, “AmarElo” é sobre esperança, sobre ver a solução no afeto. Ter esperança não é se omitir de agir. Em se reconhecer o que se é. Olhe a capa do álbum. O que você vê? No disco, o personagem tem amigos que protegem sua origem, olha as religiões como ponto de encontro e não de separação, olha para o seus amores com carinho, olha nas filhas o futuro que válida a luta. Emicida mira no sonho que soa impossível. Pessoas menos doidonas de like e mais afetuosas farão política melhor ao ser parte de uma sociedade melhor.
As músicas que vêm após “Ismália” versam em alguma medida sobre esse sonho. Quem hoje aposta no afeto como solução? Ele propõe isso a par de que vai receber críticas, mas entende que essa vida merece ser sonhada, merece ser posta em prática. Ou a gente entende esse recado ou dá uma pedrada na própria cabeça.
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