* O modo mais imediato e consequentemente fácil de você penetrar pelo delicioso mundo musical da banda goiana carne doce é pela marcante figura da cantora Salma Jô, seja em disco, vídeo ou ao vivo mesmo.
Isso está claro desde o primeiro álbum deles, de 2014, “Carne Doce” (Salma?), passando pelo impressionante “Princesa” (Salma?), pelo “maduro” “Tônus” (tônus da Salma?) e agora com o mais recente, “Interior”, quarto álbum e pelas primeiras impressões o melhor disparado do grupo de álbuns bons, lançado na última sexta-feira.
Salma é mesmo magnética. Tem uma voz carnuda e doce, raivosa e suave, é visualmente bonita e hipnotizante em ação e consegue botar, com essa voz, a banda em qualquer espectro musical a que o Carne Doce se propõe: seja na nova-MPB, seja no indie, seja na seara das “músicas para tocar no rádio”, seja para aquelas pessoas que têm saudade da “velha MPB”.
E tudo isso (tirando a parte visual porque ainda não) “Interior” tem obviamente. Mas o novo disco faz um convite especial para descolar Salma das músicas e prestar atenção na cama sonora que a banda liderada pelo marido, o guitarrista MacLoys Aquino, promove para a cantora deitar.
Está mais latente como nunca esteve a combinação de Macloys com a bateria precisa de Fred Valle, o baixo suavemente pulsante de Aderson Maia e a outra guitarra, de João Victor, que casa bonito e caminha paralela a suas programações que “enchem” o som do Carne Doce.
Para todos os lados, várias vertentes, pluralidade estética linda sem perder a essência que faz o Carne Doce ser o Carne Doce. Sem atropelar Salma e sem deixar ela atropelar essa musicalidade toda, que dá para enxergar elementos da mais pura MPB tradicional, da localidade atual e psicodélica do Booogarins, do requinte indie de bandas americanas classe como Grizzly Bear e Dirty Projectors, de experimentações na linha britânica de James Blake, do reggaezinho do Nordeste e até de trap.
Nisso vale ressaltar que este incrível quarto disco do Carne Doce tem a produção assinada por João Victor Santana Campos, a mixagem por Braz Torres Neme e a masterização por Mauricio Gargel.
Que padrão gringo de recursos de quem tem uma longa estrada de possibilidades. O que pode ser bom sinal para as bandas brasileiras, que precisam fazer suas músicas viajarem em busca da excelência produtiva.
“Interior” tem conceito forte também. A capa do disco é uma fotografia do interior de um pequi, fruto de polpa amarelo-ouro com perigosos espinhos por dentro, nativo do Cerrado brasileiro e muito difundido na culinária goiana.
O Carne Doce carrega seus espinhos por dentro também e tem procurado resolvê-los. Na música e fora dela. Em letras e títulos das canções.
Ao mesmo tempo que revela-se um disco bem goiano, “Interior” tem abertura para si mesmo, para um Brasil mais geral e principalmente o mundo, por todas as referências já citadas, que dão uma universalidade confortável à banda até para seguir uma trilha internacional como os conterrâneos do Boogarins, mesmo cantando em português.
Ou até para ganhar o Brasil de forma mais efetiva. Está cheio de músicas no disco para tocar em rádio (!), ir a programas de TV, envolver Salma em parcerias “maiores”, se a música brasileira “do andar de cima” não fosse tão esfacelada e sem rumo.
Ou até para se assumir mais como uma banda que é quinteto, mais do que a banda “que toca para a Salma”, mais do que a banda do casal Salma e Macloys, pelas fotos novas para o lançamento, pelo release de divulgação que apresenta o grupo em uma ordem alfabética. Não mais “de cima para baixo”.
Tudo isso que faz “Interior” um disco gigante nem é surpresa. O grupo já tinha revelado quatro singles bem belos neste delicado 2020, tipo “Temporal”, “Saudade”, “Passarin” e “A Caçada”. Daí juntam-se a eles canções como “Garoto”, “Sonho” e “Fake” e temos um dos discos mais completos feito no país e para os anos que virão.
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