CENA – A liberdade no espelho: um encontro de muitos Caetanos em “Meu Coco”

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Por Vinícius Felix
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Dá para dizer que muitos Caetanos se encontram em “Meu Coco”, primeiro álbum de inéditas do famoooooooooso cantor e compositor baiano em quase dez anos e quase aos 80 anos. Já na capa há uma sugestão dessa quase afirmação nossa. Caetano aparece multiplicado por espelhos – espelho, justamente um dos objetos que ele mais deu falta em seu período preso pela ditadura militar no Brasil. Que o objeto apareça aqui de cara já soa como um elogio imediato à liberdade, um dos temas do álbum.

A liberdade de não ser um só talvez seja uma das grandes batalhas de Caetano pela vida. Excluindo a vida pessoal da jogada e pensando só na questão musical dos álbuns gravados, temos vários Caetanos por aí. Tem aquele Caetano da Tropicália, tem aquele da Outra Banda da Terra, tem aquele que é parceiro de Jaques Morelenbaum, tem aquele da banda Cê. São tantos e tão diversos que é compreensível que exista quem deteste alguns e ame outros, por exemplo. Pessoalmente, gosto de todos.

Em um trecho do livro “Um Apartamento em Urano”, o filósofo Paul B Preciado escreve: “Fomos divididos pela norma. Cortado em dois e forçados em seguida a escolher uma de nossas partes. O que chamamos de subjetividade não é mais que a cicatriz deixada pelo corte na multiplicidade do que poderíamos ter sido. Sobre essa cicatriz assenta-se a propriedade, funda-se a família e lega-se a herança”. Aqui, Preciado lança um ataque contra o que chama de epistemologia binária do Ocidente. Caetano Veloso faz parte dessa insurgência. Ao “Globo”, declarou que é fluido, em uma pergunta sobre sexo. Dá para dizer que estava falando de sua história toda.

Se em diferentes momentos esses diferentes Caetanos surgiram, parece que “Meu Coco” busca reapresentar todos eles. Um gesto que é feito ao recuperar parceiros de diferentes épocas. Jaques está aqui. Pedro Sá da Banda Cê está aqui. Márcio Vitor, percussionista de Caetano em álbuns como “Prenda Minha” e “Noites do Norte” está aqui. Vinícius Cantuária da Outra Banda da Terra está aqui. Gil e Gal, partes da Tropicália, não estão, mas são homenageados em uma canção.

Essa criação de um universo particular em cada canção com parceiros de todas as épocas distribuídos por elas dá uma sensação de equilíbrio torto entre as músicas. Tudo funciona em conjunto ainda que sejam tão diferentes entre si – tem samba (“Sem Samba Não Dá”), tem música eletrônica (“Não Vou Deixar”), tem coisas percussivas (“Pardo”), tem coisas orquestradas (“Cobre”), tem até Caetano em português de Portugal em um fado (“Você-Você”).

O encontro principal do álbum é nosso com a cabeça de Caetano. Seu coco. Sua cabeça está no centro. Sua cabeça, em sua própria descrição, sempre inquieta, é ao mesmo tempo seu objeto de análise e sua ferramenta de tradução. Ao entrar no disco caímos em uma imensidão de nomes e ideias que atravessa seu caminho. E é bom estar em um território de tantas possibilidades.

Em “Verdade Tropical”, seu livro de 1997, Caetano relembra uma de suas primeiras filosofadas ainda criança, quando diante da impossibilidade de provar a existência de si e do mundo quer avisar a todos que tudo não passa de uma grande mentira. “Se não posso sair de mim – e não posso -, não há mundo nem coisas nem nada, só meu pensamento.” Certo ou não, dali em diante ele aprendeu a lidar com isso.

Nessas voltas pela própria cabeça, encontramos o Caetano devoto de João Gilberto, que lembra em “Meu Coco” um recado que João lhe deu sobre o Brasil: “Somos chineses”. É a primeira vez que ele lança um disco sem que João esteja por aqui. A lembrança querida carrega a afirmação pelo Brasil de João. E Caetano busca por meio da arte brasileira afirmar um Brasil possível em tempos de negação dessa beleza, como relatou em entrevista à “Folha de São Paulo”. “Com Naras, Bethânias e Elis/Faremos mundo feliz”, canta no refrão.

A missão de salvar o mundo reaparece em “Enzo Gabriel”. Ao pegar o nome mais popular do Brasil em anos recentes, Caetano imagina quem é essa criança que pode se tornar um menino guenzo ou gigante negro de olho azul” e pergunta qual será seu papel na salvação do mundo? É um pouco conselheiro e profeta. Ao passo que vê o “viramundo” a partir do Hemisfério Sul, avisa que ele “já verá o que é nasceres no Brasil” – um país tão rachado socialmente que é capaz de abrigar um pobre e um rico Enzo que terão vidas muito diferentes em possibilidades.
Também encontramos o Caetano avô, que aparece feliz com o neto que lhe apresenta algo inédito no mundo, um feito e tanto diante de um senhor de 79 anos. Encontramos o artista que não perde a curiosidade pela música brasileira e está atento a todas as novidades: de Gabriel do Borel ao duo Anavitória. De Djonga a Marília Mendonça. Todos citados na música “Sem Samba Não Dá”. E sem esquecer Billie Eilish, citada em “Anjos Tronchos”, sua tese sobre os efeitos da tecnologia e dos algoritmos no mundo público e privado.

Encontramos também o Caetano que abandou o liberalismo e chocou muita gente ao relatar que não considera mais as experiências socialistas o puro horror – abominando a relação direta que muita gente faz entre fascismo e nazismo com o comunismo. Que a manifestação de “Não Vou Deixar” seja encarada como direcionada a Bolsonaro ou Olavo de Carvalho é esquecer um alvo maior, que inclui os dois: o neoliberalismo e sua força de tentar reduzir o mundo a um denominador comum, no caso, a visão dos dominadores. Lutar contra esse fim é um das missões de Caetano desde “Alegria, Alegria”. Vale lembrar, é o primeiro álbum de inéditas dele após Junho de 2013, o primeiro após o golpe sofrido pela presidenta Dilma Rouseff, o primeiro após a eleição de um discípulo de um guru que tem ódio de Caetano.

Não por acaso, o álbum termina com ele visitando pela primeira vez uma velha composição, “Noite de Cristal”, que encerra assim: “Peço dias de outras cores, alegrias, para mim, para o meu amor e meus amores”.

Nas minúcias das pistas deixadas pelo compositor deve ter muito mais a se falar de “Meu Coco”. É preciso escutar mais vezes. Até aqui, fica evidente a vontade de Caetano que o Brasil retome seu destino de guardar o mundo de seu fim. Da defesa por liberdade e por um livre pensar real. Não esse esboço de defesa à violência que virou a conversa sobre liberdade de expressão em tempos recentes. Minorias de todos os tipos já sofrem com uma censura sofisticada que não garante seus direitos. Não é derrubar um vídeo de um presidente mentindo diante de um fato que vai afetar a nossa surrada liberdade de expressão.

Em um vídeo que viralizou recentemente da economista Maria da Conceição Tavares, famosa pela veemência de suas falas em alguns momentos, uma característica que compartilha com Caetano Veloso, ela comenta: “Pensar é altamente subversivo. Já fui em cana por isso. Esse direito que muita gente acha menor não é um direito tranquilo”. Que Caetano possa sempre se olhar no espelho.

* Em tempo, digno de nota o esforço da equipe de Caetano em deixar no Instagram a ficha técnica do álbum todo, sendo justos com todos os artistas que participam do trabalho. Uma atitude que as plataformas de streaming ainda se recusam a fazer, deixando os curiosos sobre arranjos e participações a ver navios, como se música fosse um produto sem autores.

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