No último sábado (15), sem qualquer anúncio e após um minuto e meio de projeções que preenchiam os telões com frases como “Isto não é um teste” e “Isso está acontecendo”, o Oasis surgiu no palco do Estádio Monumental, casa do River Plate, com a segurança de quem entra em campo já com o jogo ganho. Como tem acontecido em todas as cidades por onde passa a turnê de reunião da banda, que estava longe dos shows desde 2009, os ingressos em Buenos Aires estavam oficialmente esgotados havia um ano.
Na capital argentina, porém, o fenômeno extrapolou a lógica de demanda e escassez. Na quarta-feira anterior, três dias antes do show, já era difícil andar pelo aeroporto de Ezeiza, o principal do país, sem cruzar com alguém vestindo uma camiseta do Oasis. Nos bairros da área turística, a cidade parecia viver um clima de Copa do Mundo. Gente uniformizada cruzava cafés, metrôs e avenidas. Roupas estampadas com o icônico logotipo da banda não deixavam dúvidas: você estava ali para ver o “Oácis” —dito assim, no sotaque portenho que troca a pronúncia em inglês por um “c” bem marcado.

Em lojas espalhadas pela rua Florida e pela avenida Santa Fé, vitrines temáticas ofereciam diferentes versões de figurinos alusivos à banda. Em shoppings, galerias e até na tradicional livraria El Ateneo, a trilha sonora era uma só. Comprar um único álbum em vinil do Oasis, no entanto, não era possível. “Está tudo esgotado, você não vai encontrar nada na Argentina”, me garantiu o vendedor. Ouvi a mesma resposta em uma loja da Adidas, onde me informaram que todos os itens da coleção lançada pela marca em parceria com a banda acabaram no primeiro dia de vendas no país.
Com alguma surpresa, porém, encontrei a Oasis Fan Store, loja temporária montada no shopping Alto Palermo, praticamente vazia na quinta-feira. A explicação para isso veio assim que cruzei a porta de entrada: àquela altura, a maior parte dos itens já tinha sido vendida.
A saída encontrada por turistas vindos de lugares como Europa e Ásia foi comprar, no mesmo shopping, camisetas da seleção argentina ou itens do Manchester City. Os irmãos Gallagher são fanáticos declarados pelo clube, e essa devoção atravessa gerações de fãs. A ponto de, no Brasil, a própria produtora da turnê ter de publicar um aviso oficial: por motivos de segurança, camisetas de times nacionais estão proibidas nos shows, mas as do Manchester City, assim como as da seleção inglesa, estão liberadas.
Horas antes da primeira das duas apresentações em Buenos Aires, no sábado, dava para contar nos dedos o número de pessoas ao redor do Monumental que, de alguma forma, não tinham se “fantasiado” para o evento. Um mar de gente com o chapéu bucket eternizado pela banda caminhava pelas ruas de Belgrano rumo ao estádio.
A quantidade de ambulantes oferecendo produtos como camisetas e bandeiras era impressionante. O ritual talvez não fosse exatamente uma surpresa em um show da Taylor Swift, ou de alguma outra estrela pop enorme, mas havia algo de diferente ali: era uma caravana de homens já na casa dos 40 (e muitos acima disso) fazendo fila para comprar réplicas quase perfeitas dos itens da coleção lançada pela Adidas.

Torcida joga em casa
Antes de o Oasis entrar em campo, quem abriu a noite foi Richard Ashcroft, do Verve, convidado especial para toda a fase sul-americana da turnê. Na primeira data em Buenos Aires, ele arrancou aplausos ao tirar um casaco cintilante e revelar uma camiseta da seleção argentina. Pouco depois, já no show principal, Liam Gallagher dedicou “Cast No Shadow” a ele, em mais um aceno ao velho aliado.
O Oasis abriu sua passagem pela América do Sul com precisão e força, diante de um público que tratou cada música como um gol. Por recomendação meteorológica, que previa tempestade forte na cidade a partir da meia-noite, a produção decidiu antecipar em trinta minutos o início do espetáculo, puxando o show para as 20h30. A apresentação de domingo, inclusive, chegaria a atrasar pelo mesmo motivo, iniciando às 22h.
Apesar de não haver números oficiais consolidados, produtores locais e sites especializados afirmam que os dois shows no Monumental reuniram alguns dos maiores públicos da turnê em uma única noite. A soma exata varia conforme a fonte. Há quem fale em 75 mil pessoas a cada dia, há quem arrisque mais de 80 mil.
Ainda havia outra particularidade na etapa argentina: o palco montado no Monumental não era o mesmo usado em boa parte da Live ’25 Tour. No lugar da estrutura larga, com um único telão horizontal atravessando o estádio de ponta a ponta, surgiu uma versão mais compacta, possivelmente aproveitando parte da montagem deixada pela Dua Lipa, que havia se apresentado ali uma semana antes.
Ao vivo, ficava claro que havia uma limitação física de espaço para o palco original. Mas isso pouco importou. As edições de imagem, as animações e as projeções em tela cheia mantiveram o mesmo impacto visual da turnê, e a dinâmica imposta pelo novo formato acabou funcionando a favor do espetáculo, concentrando a atenção no que realmente importava: a banda no auge, soando forte e precisa diante de um mar de gente.
Mais cedo, por volta das 18:30, quando os telões do estádio transmitiram um comercial da Adidas incluindo trechos de “Rock ‘n’ Roll Star” e “Live Forever”, o público, que àquela altura passava da metade da lotação prevista, cantou os hits a plenos pulmões. Um desavisado, que eventualmente estivesse de passagem pelo lado de fora do Monumental, seria capaz de jurar que o show já havia começado.
Quando as luzes finalmente se apagaram, a sequência de músicas seguiu o mesmo curso das outras 38 apresentações até ali. Quase na metade do show, quando Liam deixa o palco pela primeira vez para que Noel Gallagher execute um trecho acústico de três músicas, a plateia começa a cantar o “Ole, ole, ole/ ole, ole, ole” que marcou a passagem da torcida argentina pela Copa de 2006, na Alemanha. Aqui, porém, a versão é adaptada. Dessa vez, os estrangeiros presentes no show param para ouvir dezenas de milhares de argentinos cantarem um refrão cujo sentido seria algo como “Cada dia te quero mais, eu sou Oasis, é um sentimento, não posso parar”, em tradução livre.
A banda assiste a tudo incrédula, ainda que não pareça entender uma única palavra. Então Noel anuncia uma canção para as garotas e toca “Talk Tonight”, com o estádio todo se iluminando pelas lanternas dos celulares.
Para quem conhece a dinâmica dos Gallagher, não é surpresa que os irmãos dividam o palco e o imaginário dos fãs em intensidades muito distintas. Noel, a mente musical do Oasis, assume mais uma vez a posição de maestro. Para os seus padrões de britânico sisudo, até que ele sorriu bastante na Argentina. Chegou a arriscar um “Muchas gracias” tímido e, no retorno para o ato final, apresentou cada integrante da banda com uma desenvoltura incomum, deixando por último Paul “Bonehead” Arthurs.
A menção ao velho guitarrista original da banda teve peso especial: era sua volta aos palcos depois de se afastar da turnê para tratar um câncer. Entre uma música e outra, Noel orientava o público, pedia participação e abria espaço para que a plateia cantasse trechos inteiros, um gesto raro para quem cultiva a imagem de carrancudo profissional.
Liam, por sua vez, fez o que faz de melhor: transformou o público argentino em protagonista. Não economizou elogios, soltando frases tortas do tipo “Se vocês são assim sem álcool, imagina com álcool”, em uma referência ao fato de que, por orientação da produção, não havia bebida alcoólica sendo vendida no estádio, uma lei argentina.
Em um determinado momento, o vocalista chegou a fazer o gesto circular com as mãos ao lado da cabeça —aquele sinal de “Vocês enlouqueceram”. Era um elogio, claro. Liam se alimenta dessa devoção barulhenta e, naquela noite, Buenos Aires entregou tudo o que ele precisava.

Um gramado já conhecido
O Oasis nunca escondeu o apreço quase instintivo que tem pelo público argentino. Vídeos de seu último show no país, em 2009, no mesmo Monumental, circularam por anos na internet como prova dessa idolatria hermana. Diante de uma banda mais apática, já à beira da separação, a plateia cantava não só as letras mas as melodias, os riffs, os ta-tan-tan que deveriam existir apenas nas guitarras. Os registros vinham sempre acompanhados de legendas como “best crowd ever”.
Em 2025, durante a única entrevista concedida por Noel ao longo desta turnê, ele reforçou o laço. Ao ser perguntado pela rádio inglesa talkSPORT sobre qual palco ainda o deixava ansioso na Live ’25 Tour, ele não hesitou: “O estádio River Plate, em novembro”, respondeu, com a segurança de quem sabe exatamente onde a banda se torna maior ainda do que ela já é.
No último domingo, dia seguinte ao primeiro show em Buenos Aires, Liam fez questão de registrar esse sentimento em uma postagem no X: “Todas as plateias foram BÍBLICAS, não discriminamos, nunca houve uma plateia ruim, mas a Argentina é algo ESPECIAL, isso é um fato.” Até o baixista Andy Bell, discreto e implacável, publicou na segunda-feira uma lista dos melhores shows que já fez com o Oasis: os dois de 2025 em Buenos Aires encabeçam o ranking, seguidos justamente pelo de 2009. Para uma banda acostumada a estádios barulhentos no mundo inteiro, não é trivial colocar três noites argentinas no topo da própria história.
Por isso tudo, os fãs do Oasis sabiam exatamente o que esperar: o repertório não muda, as transições são idênticas noite após noite e até os gestos de Liam, de tão ensaiados, já viraram coreografia involuntária.
Ainda assim, houve momentos no Monumental, na primeira noite, que pareciam fora do script. Em “Stand by Me”, por exemplo, o vocalista praticamente abandonou o microfone para assistir ao estádio cantar por ele. Noel, então encarregado da segunda voz, acabou virando o centro da música, sustentando a melodia enquanto Liam caminhava de um lado a outro, absorvendo aquele coro ensurdecedor.
No fim, pediu “One more time”, e o público entregou uma versão ainda mais alta. Quando a banda enfim retomou o controle, Liam soltou algo como “Isso foi lindo… vocês soam incríveis”, numa sinceridade que ele raramente deixa escapar.
A mesma sensação de vibração coletiva reaparece em outro ponto que todos já sabiam que viria, o momento do Poznań. A essa altura da turnê, o gesto já virou tradição. Ainda assim, antes de começar “Cigarettes & Alcohol”, Liam pediu que Noel —“Our king”, como ele anunciou, num aceno carinhoso ao irmão— explicasse o que deveria acontecer ali. Noel resumiu com clareza britânica: “Todos de costas, braços entrelaçados, vamos botar esse f*cking lugar abaixo.”
Foi exatamente isso que o estádio fez. Em segundos, setores inteiros se viraram de costas para o palco. Desconhecidos se abraçando, formando círculos improvisados e pulando em uníssono.
Ver 40, 50, 80 mil pessoas presas ao mesmo ritmo, de braços dados, não foi apenas emocionante, foi físico. Uma onda que atravessava o concreto, vibrava nos degraus, subia pelas arquibancadas e, por alguns instantes, transformava a música do Oasis em algo maior que nostalgia.
A certa altura da noite, depois de tanta comoção coletiva, saltava aos olhos algo menos comentado, e talvez ainda mais impressionante: o Oasis nunca soou tão bem ao vivo. Não é força de expressão. Há uma nitidez nova nas guitarras, uma espécie de musculatura que não existia nos anos 2000, e um controle absoluto do palco que só aparece quando uma banda sabe exatamente o que está fazendo. Agora reforçada por uma seção de metais e por um teclado que, em apoio ao grupo central, elevam os arranjos a um novo patamar.
Algumas músicas, que já eram ótimas e ainda estavam longe de soarem datadas, ganharam uma cara de estádio que parece natural, como se sempre tivessem nascido para isso. Outras vieram com arranjos discretamente renovados, moldados ao longo dos 15 anos em que Noel experimentou versões alternativas dentro do seu projeto High Flying Birds (mas agora sem tantos exageros e experimentações).
Nesse cenário, o trecho acústico de Noel, tão previsível quanto indispensável, funciona como um ponto de virada. “Little by Little”, que encerra esse bloco, talvez nunca tenha soado tão grande. Não é só o volume, é a precisão, com a banda toda tocando como quem já encontrou a própria velocidade de cruzeiro.
Torcida como argumento
Dizer que “latinos são calorosos” não explica nada. A relação dos argentinos com o Oasis é outra coisa. É intensidade, sim, mas também é reconhecimento. Os Gallagher fazem música como torcedores cantam no estádio, com o peito aberto, sem medo do exagero.
É futebol, claro. É cultura de arquibancada. Mas também é a sensação de que aquelas canções, escritas inicialmente em um subúrbio cinzento de Manchester, encontram eco exato em uma cidade onde paixão coletiva nunca é vista como fraqueza.
Talvez por isso o vínculo seja recíproco. A banda fala da Argentina como “O Lugar” onde tudo funciona. E os argentinos respondem como quem protege um segredo antigo e cantam tudo. Letras, melodias, respirações, intervalos.
No fim, quando “Rock’n’Roll Star” explode com o estádio inteiro pulando como se fosse gol em final de mundial, fica claro por que esse reencontro precisava acontecer ali, naquele lugar específico.
O Oasis finge uma saída de cena e deixa o palco por dois minutos, com todo mundo sabendo que eles voltariam com algo ainda maior. Noel assume os vocais para “The Masterplan” e “Don’t Look Back in Anger”. Então Liam entra para ouvir o estádio inteiro cantar “Wonderwall” com ele. “Champagne Supernova” encerra a noite sob fogos de artifício.
É um encerramento que não precisa de análise técnica nem de sentimentalismo.
É só o Oasis fazendo o que sempre fez de melhor: transformar duas horas de música no melhor lugar do mundo para se estar.
Em Buenos Aires, o futebol atravessa o setlist. No telão, durante “Live Forever”, surge a imagem de Diego Maradona. A música seguinte, “Rock’n’Roll Star”, foi dedicada a ele. Na véspera do show, Noel visitou a Bombonera para posar diante da estátua do ídolo. Um gesto simples, mas carregado de sentido para quem conhece a gramática afetiva do futebol portenho.
E, se a Argentina teve seu patrono, resta a pergunta inevitável: quem o Oasis vai homenagear no país do futebol? Não convém esperar grandes surpresas, mas há margem, aqui e ali, para pequenos gestos fora do roteiro.
Talvez o baixista Mani apareça em “Live Forever” e a homenagem se dirija diretamente mas não a brasileiros, mas em si a quem ama música britânica, porque o músico dos lendários Stone Roses que morreu ontem era ídolo e amigo pessoal deles. Vamos ver.

Agora a “final” é no Brasil
São Paulo recebe não apenas a perna brasileira da turnê, mas os últimos shows da Live ’25 Tour, o desfecho oficial dessa reunião histórica.
Ao mesmo tempo, Liam, famoso por não ser exatamente um guardião da prudência, vem deixando escapar algumas pistas soltas sobre “coisas por vir” no ano que vem. Nada confirmado, nada que mude o peso simbólico dos shows no MorumBIS, previstos para amanhã (22) e domingo (23). Mas o suficiente para que essa despedida ganhe um brilho particular: pode ser um fim, pode ser um intervalo ou pode ser apenas mais um capítulo.
Quem sabe São Paulo conquiste, no mínimo, um honroso vice-campeonato no ranking das melhores plateias. A resposta chega daqui a algumas horas e, pelo que se viu no Monumental, deve vir com clima de decisão.
No Monumental, Liam disse a certa altura do fim: “See you next year”, meio que mais por vontade do que por planejamento oficial, mostrando um desejo que quer voltar.
Vai falar o mesmo no MorumBIS, no verdadeiro final da tour, na nossa verdadeira final com os argentinos?
Veremos!