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* JP Cardoso é um jovem promissor, um músico bom e latente para se autodescobrir, com aquelas inquietudes que o levam a se enfiar em tudo, vasculhar tudo, viver, experimentar. Daí o cara me pede para escrever “um texto livre” sobre o show do Nick Cave em São Paulo, domingo passado, pelo Popload Gig. Um artista sobre o qual ele era mais curioso do que conhecedor.
Ok, escreve aí. Resolvi deixar, porque sabia que eu mesmo não teria condições de escrever. Talvez porque foi um Popload Gig, talvez porque era sobre o Nick Cave.
E ele foi e escreveu mesmo!
Está aqui embaixo.
E é exatamente assim:
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O músico australiano celebra sua missa no lotadaço Espaço das Américas, em São Paulo. Foto de cima, de Rodolfo Yuzo. A de baixo, de Fabrício Vianna.
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Meio Osho, meio Lúcifer
por JP Cardoso
É engraçado como estes dias estão com um gosto latente de que o Brasil está prestes a pegar fogo (se é que já não está pegando). E, nestes momentos, as coisas sempre acabam ficando um pouco mais extremas, não? Dá uma vontade de viver um pouco mais, de empurrar o limite um pouco mais longe, enquanto ainda pode. Enquanto dá.
Domingo foi um dia muito único em São Paulo. Já começou de um jeito especial, pelo menos para mim e para todo um público jovem, animado, dançante, sendo feliz, se permitindo superar uma infinitude de medos, cada um com os seus (alguns mais corriqueiros, tipo ‘será que vai chover hoje’; outros mais preocupantes, tipo ‘será que eu vou poder ser eu mesmo no taxi?’). Domingo amanheceu bonito, com o DJ e produtor l_cio tocando um remix incrível de Chico Buarque às 5 e tanto da manhã no Vale do Anhangabaú, no último show do SP na Rua.
Tanta coisa precisa dar certo para isso poder acontecer! Tantos privilégios que a gente nem percebe. E eu não vou nem entrar no mérito de ter algum apoio de algum governo para fazer uma festa na rua com um mínimo de organização (obrigado, Karen!). Eu estou falando de coisas mais básicas, tipo poder beber em público. Tipo poder reunir pessoas na rua para fazer uma festa. Tipo poder sair na rua vestido como quiser. Tipo poder fazer qualquer tipo de música sobre qualquer tipo de assunto e tocar isso em qualquer lugar. Não sei você, mas eu dancei naquela vez como se fosse a última.
E nem foi. A gente pediu mais uma e ele tocou “Estrelar”. Verão chegando, quem não se endireitar não tem lugar ao sol.
Domingo é dia de um ti-ti-ti a mais, olha que profecia. Vai ter um show incrível mais tarde. Vem comigo?
Corta para a Barra Funda, 13 horas depois. Um cigarro de palha suspeito da banca da esquina enquanto uma fila enorme de gente tentava entrar no Espaço das Américas, todos muito ansiosos. Não reconheço nenhum dos companheiros da pista do amanhecer. Quem são essas pessoas? Onde bebem, de que se alimentam? Não tenho visto elas nos shows, e olha que eu vou em bastante show?
Entro só. Cheio, hein? Logo encontro um amigo e reconheço nele o mesmo olhar dessas pessoas que eu ainda não conhecia – os olhos de um fã, desesperado para ver um dos seus maiores ídolos ao vivo. Pega outro drink, vamos mergulhar. Mal sabia eu que tava prestes a ser convertido para essa religião também.
Não é fácil colocar mais de 7 mil pessoas em transe no segundo em que você pisa no palco. A menos que você seja um guru indiano. Ou um ditador coreano. Ou..
A menos que você seja o Nick Cave.
Aquilo não foi um show. Foi uma missa. Foi um ritual.
Foi um culto pagão a um deus vivo, obscuro, pulsante, misterioso, que já morou em São Paulo, que entende a doideira e a correria e a realidade da galera que estava ali para ver ele, e, por isso, sofre, grita, chora, canta junto. Encosta. Chega na beira do palco. Segura na mão, olha no olho. Traz para perto, desce do palco, sobe na galera, puxa o coro, mete um #elenão, bate palma, volta ao palco, puxa para o palco, puxa palma, dirige, ensina a letra, assina o disco, reza, bate, assopra, queima, beija, abraça, reza, benze, arrebata. Meio Osho, meio Lúcifer.
De vez em quando eu me pergunto se a gente sabe que está vendo um dos melhores shows da nossa vida enquanto ele acontece. Isso aconteceu mais de uma vez, entre a hora em que ele tocou “Into My Arms” dizendo com calma que ia cantar uma prece para o Brasil e a hora em que ele falou que ia tocar uma música que a gente estava precisando ouvir e meteu “Jubilee Street” (“All those good people down on Jubilee Street, they ought to practice what they preach”) e começou outra viagem em direção a uma catarse visceral.
I’m transforming. I’m vibrating. Look at me now.
Estou vendo, Nick. Estou vendo você e os Bad Seeds tocando o terror com gosto enquanto todo mundo a minha volta grita e pula e chora de emoção. Estou vendo Warren Ellis debulhando aquela mustanguinha de quatro cordas (que, diga-se, ele que inventou), depois chacoalhando um violino distorcidíssimo com menos cerimônia com que o Sonic Youth esfregava as guitarras no chão.
Estou vendo uma das melhores bandas do mundo quase quebrando todos os seus instrumentos de tanta intensidade no final de cada música, uma erupção depois da outra, desenhando o seu próprio microuniverso paralelo em cada compasso, uma realidade alternativa em que as coisas são um pouco mais tortas e um pouco mais certas, em que ser intenso é legal, ninguém tem medo do escuro e tudo bem se a gente sofrer e chorar um pouco mais porque isso tudo vale a pena.
Nessa realidade, as crianças aprendem a tocar guitarra na escola, o submundo é a superfície, este show é o acontecimento do ano, você aceitou o meu convite, o Nick Cave é o Roberto Carlos.
Não sei você, mas eu moraria nesse lugar.
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