CENA – Duas visões diferentes sobre o mesmo disco: “Vício Inerente”, de Marina Sena

Um dos discos brasileiros mais importantes do ano foi lançado sexta-feira. “Vício Inerente”, o segundo álbum da cantora mineira Marina Sena, saiu às plataformas trazendo o “second come” da artista que virou fenômeno com seu primeiro trabalho solo, “De Primeira” (2021).

Com o disco de estreia, Marina ganhou famas reais e virtuais, tocando em 95% dos festivais brasileiros, de Rock in Rio a Lollapalooza e até gringos como Roskilde, e inclusive virando meme (o que hoje é sinal de relevância, goste-se ou não).

Como lidar com a expectativa deste “Vício Inerente”? Simples: convidando dois excelentes escribas da Popload para falar, cada um com seu olhar, de suas primeiras impressões do segundo álbum de Marina Sena.

Pirmeiro Dora Guerra, que acompanha a trajetória da cantora desde seus tempos na banda Rosa Neon e viveu de perto a estrondosa guinada solo dela. Depois Fernando Scoczynski Filho, cujas preferências musicais havia muito pouco ou nada cruzado o caminho com o fenômeno Marina Sena do primeiro disco.

E o que saiu foi o seguinte:

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Por Dora Guerra

“Vício Inerente”, como tudo o que Marina Sena tem feito em sua carreira solo, começa na estética. Narrando visualmente a ida à cidade de São Paulo (cosmopolita, cyberpunk, esmagadora mas ampliadora), o disco já sinalizava: os caminhos de Marina se eletrizaram, sintetizaram, autotunaram. E ela não freia.

Em seu segundo álbum, de fato, Marina Sena abre mão de muito do que a apresentou como artista: o som entre o indie e o MPB, os violões e a expressão tropical. Não é o “De Primeira”, não é tão fácil de digerir de primeira, tampouco pretende ser. É pra ser outra Marina, vestindo outras roupas, percorrendo outras texturas sonoras. Ainda Marina.

Parte dessa assinatura são as melodias marcantes da cantora-compositora e um flow que se sobressai, encaixando tudo-em-um-verso-só em faixas como “Que Tal”. Desta vez, a produção – por conta de seu companheiro, Iuri Rio Branco, que assinou também o trabalho anterior – também ocupa um espaço significativo. Faz sentido: é alguém que conquistou espaço na vida de Marina, pessoa física, e é presença inegável do que viria da pessoa-artista.

Tematicamente, tudo orbita em torno do tesão: “dano sarrada”, ela começa. Mas as primeiras faixas do disco não são tão fortes – vão tateando. O single “Tudo pzAra Amar Você” definitivamente não é das melhores faixas, mas ganha muito mais fôlego no conjunto. Marina é artista de álbum, melhor quando tem início, meio e fim que em um trabalho solto. 

A partir da forte “Mande Um Sinal”, balada charmosa com toques de R&B e Marisa Monte, o trabalho engata a segunda: o disco pega embalo e o tal vício inerente aparece. É nessa que lembramos como Marina Sena se tornou Marina Sena.

Ao todo, as faixas percorrem diferentes geografias, com a latiníssima “Me Ganhar”, uma guitarra à la Santana em “Tudo Seu”; o pagodão baiano (com um trato mais noturno) em “Partiu Capoeira”; o agudo, minimalista funk belorizontino na ótima “Mais de Mil”. É um repertório amplo, mas de mesma natureza – nenhuma faixa destoa, ainda que algumas sejam nitidamente mais potentes que outras.

No todo, “Vício Inerente” é um álbum que leva algumas audições para se realizar completamente – para alguns, não irá, mas não faz mal. A verdade é que, mesmo com sucesso recente, Marina Sena já tem cacife suficiente para não precisar de um trabalho sem falhas. Ela canta com um sorriso de canto de boca, com seu estilo e velocidade próprios e uma confiança difícil de driblar.

É que não tem como dizer que ela é ruim no que faz. E ela sabe disso.

🌟🌟🌟1/2

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Por Fernando Scoczynski Filho

Escrevo para a Popload há uns dez anos (ou mais), e às vezes o Lúcio Ribeiro me vem com umas propostas inusitadas. A mais recente foi essa: “Escreve sobre o disco da Marina Sena?” Sendo perfeitamente honesto, minha resposta inicial foi: “Marina and the Diamonds? Aquela que mudou de nome?”

Pois ninguém sabe de tudo, e eu não sabia quem era a cantora mineira Marina Sena até alguns dias atrás. Também não conhecia seu gigantesco single “Por Supuesto”, de 2021, muito menos tinha ciência de que ela já estava lançando seu segundo álbum, “Vício Inerente” – e é sobre esse trabalho que falarei brevemente aqui.

A primeira faixa de “Vício Inerente” se chama “Dano Sarrada”, e logo entendi por que fui convocado a analisar essa obra musical. É um disco pop, bem pop mesmo, e estou totalmente à margem de seu público-alvo e sua respectiva faixa etária. Não que eu odeie pop, mas costumo preferir algo que se afaste mais daquele som tão comum e previsível que tenta se encaixar em todas as tendências atuais dos maiores sucessos do gênero. E “Vício Inerente” segue esse caminho da previsibilidade, na maior parte do tempo.

Até a terceira faixa, “Tudo Para Amar Você”, já fica abundantemente claro que se trata de um disco de produção cara, redondinha, cheia de batidas trap e vocais processados. Funciona para deixar tudo igual a tudo que já existe no pop. Marina Sena tem uma voz única e naturalmente bonita, mas passa por diversos efeitos para ficar indistinguível de outras cantoras que usam autotune, cantando letras lascivas como outras tantas que todo mundo já ouviu, sobre um fundo instrumental cuidadosamente criado para não fazer nada fora do comum.

E a equipe responsável pelo disco merece todos os elogios por criar esse som, pois imagino que era exatamente o objetivo deles. Só que eu prefiro algo que chame minha atenção e fique na minha memória. Também tem o fato de que eu já passei dos 20 anos de idade, talvez.

Os dois discos mais votados no “Melhores do Ano” da Popload em 2022 foram “Renaissance”, da Beyoncé, e “Motomami”, da Rosalía, e concordo plenamente com a escolha; em 2021, coloquei o álbum mais recente de Halsey (“If I Can’t Have Love, I Want Power”) na minha lista pessoal de favoritos do ano. E todos esses são discos pop. Citar esses trabalhos aqui pode parecer uma comparação injusta, mas serve para ilustrar que o pop que se esforça para fugir do óbvio é muito mais interessante – e atrai fãs de mais faixas etárias e gostos musicais. 

Após a chata “Tudo Seu”, outra faixa que apenas homogeniza o som do disco, temos “Mande um Sinal”, uma bem-vinda pausa do ritmo acelerado do resto do disco. Ela se destaca não apenas por ser mais lenta, mas por ter piedade dos vocais de Marina Sena, a deixando se expor de uma forma mais natural, e por trazer uma instrumentação mais orgânica. Também ajuda que a letra foge da sexualidade abundante que permeia o restante do disco. Também digo que o último minuto de “Pra Ficar Comigo”, majoritariamente instrumental, é muito bom.

Mas precisamos falar sobre as letras. “Me Ganhar” tem os seguintes versos: “Eu quero saber de/ Tudo que me prometeu debaixo do edredom / E parece que é bom”. Depois, em “Que Tal”, ouvimos: “Você vê no meu stories rebolando e gosta/ Eu tô te esperando, só fazer uma proposta/ Me pegar de costa, tapa na bunda e não para”. Perto do fim do álbum, em “Mais de Mil”, os melhores exemplos do que quero ilustrar aqui: “Me mandou mensagem no particular/ Tá ficando obcecado / […] Toda foto você sempre deixa o like/ Esperando só mais uma chance / […] Quer me ter no seu quarto, me ver de quatro”.

A primeira coisa que me veio à mente foi uma citação da Madonna, dando sua opinião sobre o filme “50 Tons de Cinza” em uma entrevista: “Deve ser muito sexy para uma pessoa que nunca transou na vida”. São letras tratando de sexo, mas com um tom não muito adulto, do ponto de vista de alguém que ainda passa o dia todo olhando suas notificações no Instagram.

Isso cria um meio-termo esquisito: “Vício Inerente” fica bem longe de qualquer sutileza nas palavras, mas, ao mesmo tempo, soa bobo e infantil em comparação, por exemplo, à luxúria descarada da Pabllo Vittar em seu último disco, “Noitada”.

O que eu acho mais curioso é a comparação que Marina Sena fez em relação a seu primeiro disco, “De Primeira”, dizendo que a transição para “Vício Inerente” era como trocar uma carroça por um carrão.

De fato, a produção neste trabalho novo é muito mais elaborada, e imagino que custou muito mais – dinheiro bem investido, tendo em vista o mercado que imagino que querem atingir.

O problema é que acabaram tirando toda a individualidade que a cantora tinha em sua estreia, inserindo um monte de efeitos vocais e batidas trap que não acrescentam em nada a sua originalidade, apenas a aproximam da massa homogênea que é o pop atual.

Se eu ouvir uma faixa de “De Primeira” no meio de outras dez cantoras atuais, quem sabe eu consiga identificar de quem é; se eu ouvir uma de “Vício Inerente”, não posso dizer o mesmo.

Parabéns à cantora e seus produtores por criar esse verdadeiro carrão musical, mas a carroça tinha mais personalidade.

🌟🌟

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* A foto de Marina Sena deste post e a da capa do disco são de Fernando Tomaz.