Você recebe com alegria o disco novo da Beyoncé, ouve sem parar, comenta com os amigues, escolhe sua(s) faixa(s) preferidas, debate a volta da house music e tals. Mas quem é que vai lá no “Renaissance” e constroi toda uma tese ótima e necessária sobre a ficha técnica peculiar do álbum?
Quem? Queeeem?
Ela mesma, Dora Guerrra, a senhorita Semibreve.
Atenção aqui todo mundo: a gente tem que parar de achar que o excesso de compositores em uma música tira o mérito dela. Esse papo é antigo, na verdade, mas rolou uma certa discussão em torno do assunto, de novo, no caso do “Renaissance”, o álbum novo da Beyoncé (em algumas faixas do disco, mais de VINTE compositores são listados).
Aí tem gente (leia-se: a Diane Warren) que enxerga nisso um problema, entendendo que as músicas não são tão boas ou que a artista tem menos mérito nelas por não ser responsável por cada verso.
Essa lógica é melindrosa, para dizer o mínimo. Como já discutimos por aqui algumas vezes, originalidade não só inexiste como já está meio fora de moda – o novo chique, na verdade, não é fingir que você criou do zero; é dar um crédito bem dado. Se você esbarrou em outra faixa na hora de construir a sua e sampleou mesmo que um instrumentinho tímido no fundo, basta dar nome aos bois. Assim, você não só se previne de acusações de plágio, como se ancora na homenagem ou paródia. E quem não ama uma boa ref?
No caso de Beyoncé, tudo aquilo era um tributo. Tudo. cada faixa usa vários samples de vários momentos da história da música, um ato premeditado que compõe o todo da obra. O propósito dela, aliás.
Tirar do “Renaissance” a lista gigantesca de créditos é tirar dele justamente seu ponto alto. Nele, a artista não está interessada em se exaltar, mas justamente exaltar sua comunidade. O álbum serve como um holofote para tempos passados e presentes, desenhando o que não é visto como deveria. Ela está dizendo: “Não sou eu quem criou a música eletrônica que vocês amam, muito menos esses branquelos que vocês andam ouvindo por aí”.
E, aí, Bey lista um por um quem deve ser mencionado – no caso do remix com a Madonna, ela o faz literalmente até. O “Renaissance” é cada nome naquele encarte: um projeto coletivo, meramente liderado e assinado por Beyoncé como sua curadora e frontwoman. É uma colagem histórico-artística da música dançante, feita na humildade.
(se o objetivo não fosse justamente chamar a atenção para esses nomes, você acha que Beyoncé teria lançado a lista de créditos antes mesmo do álbum?)
Esse olhar para a música como curadoria é uma forma até futurista de explorar as possibilidades da arte. Não é mais possível se afirmar como inventor de nada, principalmente porque todas as suas fontes estão a um google de distância. Música sempre foi reciclagem, mas depois da invenção e popularização dos samples, esse recurso não é só estético como passa a ter também um propósito simbólico: se arte é reativa ao mundo a seu redor, ela tem que responder a uma necessidade das pessoas, também.
Hoje, nessa avalanche de músicas e informações, nossa necessidade também é de entender o que vale ouvir e conhecer. Se Beyoncé cita Donna Summer em sua faixa, ela está dizendo que você precisa saber quem é Donna Summer. Já se Adele se inspira em Martinho da Vila sem creditá-lo, ela está dizendo que você não precisa saber quem é Martinho da Vila. E aí o problema é realmente de quem tem 30 compositores listados?
Comentários sobre Adele à parte (foi um mero exemplo para fins de explicação, mas eu gosto da gatinha!), é preciso rever o que a gente foi ensinado a entender como bom ou ruim, válido ou não válido.
Claro, se uma obra é sensacional e foi feita somente a duas mãos, essa pessoa merece sua cota de elogios. E, se a obra se diz pessoal e tem 30 compositores, talvez a avaliação a ser feita seja mais nesse sentido.
Mas, cara, no fim das contas, o resultado fala por si – não é fácil pegar referências, samples, infinitos produtores e colaboradores e transformar isso num projeto coeso e excelente, não. Se deu certo, você só acaba tendo mais pessoas a agradecer pelo trabalho f*da.
E eu já disse antes e vou dizer de novo: música é um ser vivo, pulsante, orgânico. Hoje, mais do que nunca, até nós – audiência – fazemos parte desse processo, remixando faixas lançadas com nossos conteúdos, danças, colaborações, dando outros significados a clássicos a todo o tempo.
Música não é um jogo ou um esporte em que ter mais participantes constitua alguma quebra de regra. Isso é enxergar a arte como uma competição, sendo que todos nós ganhamos com a colaboração e diálogo.
Sinceramente? A principal vantagem de alguém que compõe tudo sozinho é não ter que dividir grana/autoria com mais ninguém depois. Só isso.
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* Dora Guerra compõe sozinha seus tweets no @goraduerra.
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