
Os primeiros arranjos de piano que abrem “Sexo, Violencia y Llantas”, faixa inaugural do tão aguardado álbum LUX, da cantora e performer e visionária Rosalía, soam como um eco distante dos últimos acordes de “Sakura”, o desfecho de “Motomami” (2022), seu incrível e já revolucionário disco anterior.
É como se fosse aberto uma ponte para que Rosalía deixasse o ruído dos motores para atravessar, serena mas incandescente, em direção a um novo território feito de luz, fé e plenitude. A artista se pergunta: “Quién pudiera vivir entre los dos?”. O terreno e o celestial, o profano e o divino.
Surge então, uma Rosalía quase messiânica, mas ainda profundamente humana, de espírito inquieto presa entre o êxtase e a matéria, incapaz de caber em um único plano de existência, buscando um equilíbrio impossível: tocar o céu sem renunciar à carne.
LUX nasce justamente dessa fricção, da centelha que explode quando o asfalto de Motomami encontra o firmamento.

* Anunciação
As primeiras aparições do conceito LUX já deixavam rastros de uma virada estética e espiritual: a luz branca e fria das imagens promocionais, os cartazes com símbolos religiosos e pentagramas espalhados por capitais do mundo, sem explicação e mistério.
O presságio definitivo veio quando, em silêncio, a artista publicou uma partitura de piano da faixa “Berghain” em seu perfil do Substack, como quem deixa um enigma para ser decifrado. Fãs e músicos mergulharam nas notas tentando compreender o que se aproximava e, de fato, algo monumental vinha aí.
Repleto de elementos da música clássica e referências diretas à música sacra renascentista, com Bjork e Yves Tumor como aliados, o primeiro single, “Berghain”, lançado em 27 de outubro, marcou a abertura solene de LUX. O título, emprestado do lendário clube de techno berlinense, já anunciava o contraste que definiria toda a nova era.
* Elevação
Gravado com a London Symphony Orchestra, LUX apresenta logo de cara uma proposta sinfônica e monumental, erguida sobre camadas instrumentais, arranjos de cordas e coros que soam mais como uma ópera moderna do que como um simples disco pop. É uma experiência de grandeza e ambição sonora quase inédita dentro do gênero.
Mais do que um rompimento com o que se espera da música de massa, Rosalía, eternamente a nerd apaixonada por som, a mesma que transformou um trabalho de faculdade em “El Mal Querer” (seu segundo álbum centrado em flamenco mesclado com pop/urbano), parece agora querer com devoção quase acadêmica educar nossos ouvidos para a música erudita.
Não é à toa que cada faixa de LUX soa como um pequeno milagre microfonado. A voz de Rosalía, cada vez mais etérea e sublime, atravessa 13 línguas diferentes (espanhol, catalão, latim, árabe, ucraniano, siciliano, japonês, português, alemão, mandarim, entre outras) como se o sagrado tivesse sotaque próprio em cada canto do mundo.
Essa vocação geográfica e espiritual se manifesta com força em “Relíquia” (faixa produzida por Guy-Manuel de Homem-Christo, metade do sublime Daft Punk), uma das letras mais confessionais do álbum, em que a cantora costura memórias, perdas e renascimentos por meio de cidades que marcam fases da sua vida e da sua identidade artística.
“Perdí mis manos en Jerez, mis ojos en Roma”, canta como quem se desmonta pelo caminho, deixando pedaços do próprio corpo peregrino espalhados pelo planeta. Em entrevista pré-lançamento ao jornal americano “The New York Times”, Rosalía revelou ter se inspirado em Santa Teresa de Jesús, santa mística cuja mão e braço foram amputados e transformados em relíquias. A ironia histórica é brutal: a mão incorrupta de Santa Teresa permaneceu sob posse do ditador Francisco Franco até sua morte, o símbolo da fé aprisionado pelo poder.
Mas e o hyperpop no final? Genial!




Acima, imagens da listening-party de LUX em Barcelona, no Museu Nacional d’Art da Catalunya.
* Entre anjos e motos
Apesar da ruptura, LUX ainda carrega ecos sutis de seus trabalhos anteriores. Há lampejos de familiaridade: um autotune aqui, uns samples ali, umas baladas românticas (“né, Sauvignon Blanc?”), mas esses elementos nunca ocupam o centro do álbum, aparecem apenas como sombras de um passado recente.
“Novia Robot” e “Porcelana”, por exemplo, poderiam facilmente figurar em Motomami, ambas partilham de uma batida precisa e de uma estética asiática (“Novia Robot” contém versos em mandarim enquanto que “Porcelana”, em japonês).
Em “Porcelana” principalmente, além da fusão tão característica entre o “velho” flamenco e o “novo” clássico, há incursões de trap comum em Motomami. E sobre a voz masculina não creditada que surge ao fundo? Rumores apontam de que a voz seja de ninguém menos que a de Frank Ocean.
No início da canção, Rosalía se mostra frágil cantando sobre sua “pele de porcelana, bonita mas quebradiça”, uma metáfora para a vulnerabilidade da mulher exposta ao olhar do mundo, à fama, ao amor. Mas essa delicadeza dura pouco. Quando chega à versão em japonês, a canção vira de ponta-cabeça. Rosalía abandona a fragilidade e explode:
“A beleza? Eu a jogarei fora/ Antes que você a arruíne/ Você me acha perigosa?/ É talento inato/ Sou a rainha do caos/ Porque foi o próprio Deus quem quis assim.”
A santa de porcelana se quebra e do estilhaço nasce a deusa. Rosalía renuncia à docilidade, à beleza e ao controle para assumir o papel de força criadora e destrutiva, a energia primordial que, segundo ela mesma canta, Deus quis assim.
Escrita nos tempos de El Mal Querer, “La Rumba del Perdón” e “De Madrugá” ressurgem sete anos depois em LUX, transfiguradas, mais lentas, banhadas em reverberações e cordas que substituem o que antes era puro sangue flamenco.
Em “De Madrugá”, entre o lamento e prece, surge um verso em “ucraniano”: “Eu não procuro vingança/ A vingança me procura.” É o eco da culpa e do destino, temas que já pulsavam em El Mal Querer, agora revisitados com maturidade e espiritualidade. Se antes havia a ferida aberta, agora há aceitação e a convivência com o castigo como parte da redenção.
E por fim, não há nada mais “Los Angeles” que as duas faixas que fecham o álbum: “Memória” e “Magnolias”. A primeira um fado português, que parece minimalista até o coral e a orquestra entrar com tudo. A segunda, Rosalía relata seu funeral imaginado. Fala da finitude, da despedida e da comunhão entre vida e morte, mas com aceitação e humor. É como se ela compusesse a trilha sonora para o próprio velório, entre motos, vinho e flores. A morte não como um fim, mas uma travessia, um espetáculo inevitável.

* Canonização
Se nos últimos anos Rosalía já se afirmava como uma artista visionária e banhada de originalidade, em LUX ela confirma o estatuto, não apenas como cantora pop global, mas como compositora e arquiteta de mundos sonoros.
Tudoem LUX, a orquestra, o coral, o palco, a experiência ganham corpo e intenção e exige do espectador muito além de uma curtida no streaming: um levante de suas cadeiras e minutos de aplausos de pé para uma das maiores artistas da nossa geração.