CENA – Saiu “Colinho”, o novo CD da Maria Beraldo. A calma depois da tempestade em um mundo em chamas

Em seu segundo álbum, “Colinho”, a cantora e multi-instrumentista Maria Beraldo oferece um colo para a população queer, dando sequência a seu trabalho de apresentar para o mundo sua identidade usando uma estética complexa e permeada pelo que há de mais passional em si.

O que poderia ser definido como um hiato de 6 anos entre o lançamento de seu marcante disco de estreia como cantora, “Cavala” de 2018, e este novo trabalho foi na verdade um processo de ampliar seus horizontes. Atuando na direção e composição musical para peças de teatro e trilhas sonoras de cinema, Beraldo manteve um constante cultivo de referências ao longo dos anos de pandemia, que culminaram na produção deste “Colinho”, que saiu hoje às plataformas. 

“Cavala” foi um grito de libertação em que Beraldo assume sua sexualidade e “Colinho” é o passo seguinte, uma investigação da compreensão de sua identidade de gênero em um mundo que está em guerra com todos que questionam a hegemonia da heteronormatividade. 

Resumindo, toda essa importante questão atual transformada em música boa.

Para entender melhor o disco é importante entender quem é Maria Beraldo e sua história. Com pais músicos e professores, ela cresceu estudando o que hoje temos como clássicos: o choro e o samba. E, e antes de ser cantora, ela era instrumentista, do clarinete à bateria.

O estudo e pesquisa são constantes para Beraldo e para ela são “um ato político, um cultivo do que você quer fazer, não só do que o você vai vender”, como disse em entrevista à Popload.

Suas referências, que ela compartilhou em uma playlist disponível aqui, atravessam o álbum novo trazendo uma pluralidade de ritmos e gêneros. E é na união dessas diferentes facetas que Maria Beraldo se apresenta por inteiro para o ouvinte. 

Depois de passar por esse processo de rompimento com seu primeiro disco, assumindo sua persona artística como cantora, Beraldo atinge a “paz” que lhe permite explorar outros sentimentos em suas músicas. E ela já demonstra isso na primeira música do álbum, que dá nome ao disco.

A “paz” vem entre aspas porque o conflito entre a sociedade opressora e a artista é constante. “Colinho” é um álbum permeado por essa fricção.

Um ótimo exemplo é a faixa “Truco”, feita para o filme “Regra 34”, de Julia Murat, em que Beraldo se volta contra seu opressor: “Você mete tudo / eu truco / vou comer você”.

Para a artista o processo de escolher os timbres e arranjos com seu produtor, Tó Brandileone, foi tão importante quanto as composições das músicas. Para conseguir expressar seus sentimentos de uma forma que fizesse sentido para ela, seguir com Brandileone foi natural, pelas suas capacidades técnicas e também pelo trabalho que já haviam feito em seu primeiro disco.

“Colinho”, a música, é um claro exemplo desse preciosismo nos arranjos. Nela, Beraldo incorpora referências do funk e rap em uma exploração do seu sexo com um ritmo que gera um estranhamento quando comparado com a letra que acompanha a música. 

Esse elemento também é muito presente no primeiro single do disco,”I Can’t Stand My Father Anymore”. Se antes, em “Cavala”, Beraldo chorava, agora a cantora dá risada das expectativas da sociedade.

Em uma primeira audição, a escolha estética do disco pode causar um estranhamento. E a artista reforça: “Não me sinto dançando conforme a música (como diz o ditado). Eu sou estranha”.

“As pessoas que hoje em dia representam a tradição (da música), romperam com o que tinha antes”, completou Beraldo. Essa tradição da vanguarda é um elemento muito importante para sua estética. 

Como pessoa lésbica e não-binária em um mundo que oprime os individuos que se viram contra essa sistemática heteronormativa, Maria Beraldo é uma pessoa estranha, mas para ela “é muito grave a gente achar que (essa divisão entre ser) homem e mulher é natureza.”

Indo contra o que a sociedade dita como natureza é um elemento que se amplia dentro de sua música, a gente consegue ver em “Colinho”.

Seus processos de composição e arranjo bebem desse seu processo de construção como ser humano, desde sua infância com muita música erudita a sua entrada na vida adulta, quando começa a consumir mais música pop e eletrônica na faculdade. 

Da mesma forma, o tema é abordado na faixa “Masc”, que conta com participação de Ana Frango Elétrico, artista carioca que também se identifica como não-binária, em que a letra fala sobre a masculinidade dentro de si e brinca com a dualidade sonora da palavra “Masc”, que se assemelha a “mask”, e, inglês, aludindo à máscara da identidade de gênero binária imposta pela sociedade. 

Entrando mais profundamente na investigação do ser, a faixa “Quem Eu Sou”, parceria de Beraldo com Negro Léo, explora diretamente o tema de se encontrar nessa “natureza” criada pela humanidade, conceito que é sintetizado no refrão “A fauna brinca de se estrepar, brinca até cansar/ a fauna brinca de se ferrar, a fauna brinca até sonhar”.

“Termino o disco com a música que o explica. Explica por que eu canto e por que a gente canta. A música é ritual, a música é transformação”, fala, sobre a faixa “Minha Missão”

E o processo de gravação dessa música em questão traz para a cantora o que ela considera ser a mais alta tecnologia que é “a gente se encontrar e fazer um som, algo que a tecnologia não consegue replicar.”

Assim, Beraldo escolheu encerrar o disco com uma improvisação com seus amigos, artistas e instrumentistas Thiago França e Rodrigo Campos, gravada em um take ao vivo, sem grandes edições ou intervenções.

Em “Colinho”, Beraldo apresenta o que lhe é mais íntimo, de seus sentimentos ao seu sexo, para acalentar sua comunidade e questionar o status quo, mas no fundo, como ela define, “é um disco que qualquer pessoa que se dispuser a ouvir a música, vai ver que tem um coração batendo por trás”.


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* A foto de destaque de Maria Beraldo usada na home da Popload é de Ivan Nishita. A deste post, acima, é de Ivi Maiga Bugrimenko.