Semana intensa. Saindo de um baile funk caótico tocado por Ramemes em par com Juçara Marçal, mergulhamos em um rio fundado por Amaro Freitas no centro do novo mundo e de lá vamos prontos para “explodir o teto” acompanhados por Sofia Freire. E isso é só parte da dança da semana.
“Delta Estácio Blues”, álbum solo de Juçara Marçal e um dos melhores lançamentos de 2021, segue rendendo. Após ganhar um EP com faixas que não couberam na obra, vem aí um disco de remixes que promete elevar a obra “do funk ao techno, do amapiano ao industrial, apresentando um panorama diverso, marcado por processos de reconstrução e reinvenção das faixas originais”. O primeiro gostinho dado é a reconstrução do DJ Ramemes para a faixa “Ladra”, canção que é de autoria de Tulipa Ruiz. A gravação original já carregava um tanto de remix, digamos, ao trazer Juçara, a partir da própria voz, criando sua própria Tulipa. Um processo de imaginação, já que a própria Tulipa ainda não gravou sua versão de “Ladra” e talvez nunca grave, mas Juçara foi Tulipa ali buscando o estilo vocal da cantora. Um processo para lá de interessante e que se amplifica em sentido com Ramemes picotando a gravação original dentro de uma batida densa de funk. Ramemes mexe com a voz de Juçara e também reescreve a letra de Tulipa com inserções, deixando a “Ladra” dentro de um baile do Ramemes. Achamos mídia, para ficar no bordão do DJ. Música só no Bandcamp dele, aqui.
O pianista Amaro Freitas, do grandioso “Sankofa” de 2021, chegou com “‘Y’Y’, trabalho que é fruto de suas andanças por Manaus e de uma conexão sua com os Sateré-Mawé, comunidade daquela região. Tanto que é dessa ponte que vem o título. Y’Y no dialeto indígena Sateré Mawé significa “água ou rio”, explicou Amaro. Exímio contador de histórias, Amaro não traz do seu rolê novidades para o piano. Na verdade, ele leva o piano para dentro da floresta e carrega a gente junto – uma habilidade de transportar ao modos de Naná Vasconcelos, homenageado aqui. É como se o ouvinte estivesse na beira do rio, percebendo o cenário, vendo a rotina – mais que isso, o piano vira o próprio rio em determinado momento e mergulhamos como Amaro. Através da participação de músicos do mundo inteiro, como Jeff Parker, Aniel Someillan, Brandee Younger e Shabaka, Amaro reconfigura tudo – o centro do planeta terra e a chave para um possível futuro estão aqui. Brasil.
Com certeza você já ficou com alguma palavra na “ponta da língua”. A expressão explica um pouco do processo criativo de Sofia para o seu novo disco, tanto que virou o título dele: “O som precisou esperar enquanto o sentido das coisas (e principalmente a falta dele) se formava”, ela explicou. Em seu terceiro trabalho de estúdio, é a primeira vez que as letras das canções são suas – o silêncio foi a pausa para a avalanche de ideias, a ânsia de se colocar inteiramente nas músicas, sem medo de se expôr. E o resultado é esplêndido: só o verso “Desaprendeu a dormir/ Dormiu para não ter que aprender/ A desprender e deixar ir/ A despencar, deixar morrer” valem a vinda. E “Autofagia” ainda segue inspirada em sua descrição de um personagem que se enrola em preguiça. Daqueles discos que deixam cheio de boas ideias e sacadas para a vida.
Na semana que a gente descobriu que a Luiza Lian e a Marina Sena estão virando amigas, outra amizade da Luiza brotou em música. Ela é a convidada de Papisa na belíssima, romântica e quente “Amor Delírio”, uma parceria sônica de Rita Oliva, o nome real de Papisa, com Tágua Tágua, codinome do senhor Felipe Puperi. Tudo em gravação luxuosíssima da Alejandra Luciani, engenheira de som que sempre faz mágica. Vale muito ver o vídeo da faixa: tem um ar meio David Lynch tropical. Após três singles, “Amor Delírio”, “Dores No Varal” e “Melhor Assim”, agora é esperar por esse disco chegar logo.
Achamos por aqui que “Cererê”, quinto álbum da excelente banda goiana Carne Doce, é o disco maduro do grupo do casal Mac e Salma. E parece que eles concordam ao verem no álbum pedaços de suas outras obras. O que significa que o amálgama de indie rock com algo de MPB que eles sempre fizeram está fresco e rico – a junção das melodias de guitarra que cantam com Salma estão todas lá. O ar de retrospecto está cantando em “Cererê”, que remete ao centro cultural de Goiânia que foi e é parte da resistência da música local .
Um dos nossos artistas favoritos hoje é o alagoano Bruno Berle. Seu inventivo som sempre ao lado do parceiro Batata Boy carrega algo que o Brasil precisa contar para o mundo inteiro. Não por acaso, Bruno trabalha com os selos gringos Far Out e Psychic Hotline. E é por eles que sairá “Reino dos Afetos 2”. Sim, parece filme e talvez seja, mas fica assim a sequência de sua estreia “Reino dos Afetos”, lá de 2022. “Dizer Adeus”, segundo single adiantado, mostra que Bruno deixa mesmo o violão de canto um pouco atrás de algo etéreo da música eletrônica lo-fi, carregando no autotune para encontrar novas texturas vocais – uma trilha sonora para sonhos na luz do dia.
Até o meio do ano, Emicida vai fazer a turnê de despedida do álbum “Amarelo”, lançado em 2019. Sem inéditas suas desde 2021 com “São Pinxiguinha”, o rapper aproveitou o momento para soltar a saideira do projeto. “Acabou, Mas Tem” soa como despedida dessa fase. Uma construção bonita que se deu numa das era mais sombrias do Brasil. É como ele faz questão de lembrar: “Ficou noite três da tarde, tio/ E a vida seguiu normal”. Emicida sabe que ainda sentimos algo, ainda que tem horas que não pareça – especialmente em conjunto. Sentimos algo? Somos um país? Perguntas que ficam para a próxima etapa. Curioso que, na capa do single, Emicida aparece com um cubo mágico resolvido, um símbolo para o fim de uma era, certo que está pronto para resolver o próximo enigma.
“La Mer” é um clássico francês que data dos anos 1940, ainda que tenha a letra composta nos anos 1920. Quase cem anos depois, Caetano torna sua a canção de Charles Trenet, uma poesia que une a figura do mar e da mãe baseado na sonoridade idêntica das palavras em francês. “O mar descrito por Trenet embala tudo, como uma mulher que nina uma criança”, escreve a jornalista Patricia Kogut, que cuidou de traduzir a letra em português para a divulgação da música. A gravação da faixa, que antecipa a última turnê mundial de Caetano, tem uma história curiosa. Foi gravada para o documentário autobiográfico da escritora Christine Angot. Angot viu Caetano cantar a música uma vez em Paris, quando resolveu interpretar “La Mer” em homenagem a seu antigo empresário Guilherme Araújo, que sempre pediu que ele cantasse a canção, pedido esse que Caetano adiou e acabou não conseguindo atender com Guilherme vivo. Foi a homenagem póstuma em Paris que emocionou Angot. Outro detalhe interessante é como o arranjo de violão dado por Caetano remete a algumas músicas brasileiras conhecidas – a gente quase saiu cantando “O Bêbado e a Equilibrista” umas horas ali.
Delícia o indie pop do duo A Balsa, banda paulistana de Fil (vocalista) e Bari (o cara dos sons). Eles acabaram de lançar o primeiro álbum, que tem um título que conversa muito com os nossos tempos de hiperconexão virtual: “A Semana Passou Parecendo um Mês”. E isso conversa súper com “Rede Social”, do bom verso “Eu não sei fazer/ Rede social”, que tem sentido duplo – o social aí pode ser aquele da vida real, aquela conversinha de happy hour e tals. O clima de videogame da sonoridade da banda encaixa perfeitamente na letra.
Eita, que calorzinho bom que dá essa nova canção do trio paranaense Tuyo. É como eles cantam uma hora lá na música: “Me ouvi dizendo que vontade de viver”. Seria a trilha sonora de abertura perfeita de um filme do Hayao Miyazaki ambientando no Brasil. Imagina?
11 – El Presidente – “Perigo no Sol (com Benke Ferraz)” (7)
12 – Kamau – “Documentário” (8)
13 – Sofia Freire – “Mormaço” (9)
14 – Josyara – “Ralé/Mimar Você” (10)
15 – Mahmundi – “Estácio, Holly Estácio” (11)
16 – BNegão – “Canto da Sereia” (12)
17 – Maria Maud – “02.02” (13)
18 – Pitty – “Femme Fatale” (Ao vivo) (14)
19 – Madre – “Sirenes” (15)
20 – Ayrton Montarroyos – “Peter Gast” (16)
21 – Guerra – “É Massa” (17)
22 – Céu – “Coração Âncora” (18)
23 – Raidol – “Imensidão” (19)
24 – Rodrigo Campos – “Gamei” (20)
25 – Thami – “Deixa Queimar” (21)
26 – Jup do Bairro – “Amor de Carnaval” (22)
27 – Jorge Aragão com Rappin Hood – “Mafuá” (24)
28 – Zarolcomzê – “Magnerwoura” (25)
29 – Luedji Luna e Xênia França – “Lua Soberana” (26)
30 – Chinaina – “Roubaram Minha Jóia” (27)
31 – Dead Fish – “11 de Setembro” (29)
32 – Pabllo Vittar – “Pede pra Eu Ficar (Listen to Your Heart)” (30)
33 – Apeles – Todos os Santos Permitidos” (31)
34 – Jambu – “Lentamente” (32)
35 – Vandal – Violah (33)
36 – Clara Bicho – “Luzes da Cidade” (34)
37 – Parteum – “’12 6 10” (35)
38 – Psirico – “Música do Carnaval” (36)
39 – GRIYÖ – “Afropenobeat” (37)
40 – Rico Dalasam – “Jovinho” (38)
41 – Ogoin & Linguini – “Quando Tudo Começou” (39)
42 – Marabu – “Algo Me Diz” (40)
43 – Wado – “Dente D’ Ouro” (41)
44 – Tangolo Mangos – “Glauber Rocha” (42)
45 – Don L – “Tudo É Pra Sempre Agora (com Luiza de Alexandre)” (43)
46 – Giovani Cidreira e Luiz Lins – “Amor Tranquilo” (44)
47 – João Gomes – “Mais Ninguém” (45)
48 – Mart’nália – “Lobo Bobo” (46)
49 – Perdido – “30+” (47)
50 – Lori – “Me Dói, Boy (com Matias e FBC)” (48)
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* Entre parênteses está a colocação da música na semana anterior. Ou aviso de nova entrada no Top 50.
** Na vinheta do Top 50, a cantora Juçara Marçal (em foto de José de Holanda).
*** Este ranking é pensado e editado por Lúcio Ribeiro e Vinícius Felix.